Rubião é um precursor do realismo fantástico por nossas terras
[este é um post da série “Por que ler…“]
O primeiro – e menos nobre – motivo por que ler Murilo Rubião (1916-1991) é a atual facilidade de acesso a toda sua obra. Sim, porque sua totalidade se resume a 33 contos, todos reunidos no volume Obra completa, que, além do mais, é uma edição de bolso, ou seja: tem um preço bastante amigável. Penso que seu trabalho merecia (ao menos paralelamente) uma edição mais bem cuidada, com um acabamento mais agradável de se manusear, mas como o que importa de fato é o texto contido nas páginas, já é bastante bom poder ter todos esses contos ao nosso dispor. Essa acessibilidade que cito como primeiro motivo é apenas um estimulante, um facilitador a mais, para se conhecer a obra do autor. De nada valeria se os contos não fossem muito bons. E é aí que partimos para o segundo motivo por que ler Rubião.
Ele é um escritor único na literatura brasileira. Se você nunca leu, peça para alguém que o conheça descrever seu trabalho. Pergunte: “Mas é tipo o quê? Parece com qual escritor, o estilo?”, e veja seu interlocutor se enrolar na resposta. Rubião é um precursor do realismo fantástico por nossas terras. Ainda assim, não há nada de precário em sua obra, muito pelo contrário: os textos são de um acabamento próximo à perfeição. O autor é, ao mesmo tempo, inaugurador e definitivo. Não é uma coisa simples você criar algo tão distinto artisticamente, tendo poucas referências nas quais se apoiar. Chegar tão longe num caminho que você mesmo teve que abrir é para poucos.
O terceiro motivo por que ler Murilo Rubião é… bem, o mais óbvio: ele é um excelente escritor. Além do fantástico nas narrativas, além de seu aspecto inovador, há muito mais a ser observado e apreciado em seus escritos. Ele deixou apenas 33 contos porque, acima da quantidade, privilegiava a qualidade. Pelo que dizem as pessoas que conviveram com ele, o escritor passou grande parte da vida revendo esses textos, aperfeiçoando-os. O resultado é sempre uma impressionante concisão nas ideias. Veja, por exemplo, nesse trecho de “A flor de vidro”, como a relação entre o casal protagonista é configurada de forma precisa e muito rica, em poucas linhas:
De lá trouxe-lhe uma flor azul.
Marialice chorava. Aos poucos acalmou-se, aceitou a flor e lhe deu um beijo rápido. Eronides avançou para abraça-la, mas ela escapuliu, correndo pelo campo afora.
Mais adiante tropeçou e caiu. Ele segurou-a no chão, enquanto Marialice resistia, puxando-lhe os cabelos.
A paz não tardou a retornar, porque neles o amor se nutria da luta e do desespero.
Essa economia como recurso de escrita não significa uma redução no poder simbólico dos contos. Aliás, é justamente nesse ponto que o trabalho de Rubião, em minha opinião, guarda sua maior força. Júlio Cortázar, outro grande expoente do realismo fantástico e das narrativas breves, diz que o conto deve apontar para sentidos muito além de suas fronteiras, e nisso Rubião é mestre. Se tem algo que acho fascinante em seu trabalho é como seus contos apontam para muitos sentidos diferentes, de difícil descrição, causando um enorme impacto no leitor.
Os símbolos, as abstrações, as analogias, tudo isso funciona de forma muito poderosa: cada conto parece remeter a uma série de ideias e sentimentos através de metáforas, que – sem uma interpretação direta ou óbvia devido ao seu aspecto fantástico e à elegância de Rubião – criam um mosaico de sentidos a afetar o leitor. Veja, por exemplo, o final (como dizem por aí: contém spoiler) do conto “Teleco, o coelhinho” – provavelmente seu texto mais célebre, no qual um homem leva para casa um ser falante que, a princípio coelho, pode se transformar em outros animais:
Alguns dias transcorridos, perdurava o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo.
Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.
Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, trissava.
Por fim, já menos intranquilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava.
Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.
Ao simplesmente transcrever esse trecho, já me arrepiei. Essa é uma das características do trabalho de Rubião: em quase todos os contos, ao terminar a leitura, você sente um impacto que te faz parar por alguns segundos, erguer a cabeça do livro e se quedar absorto, atingido profundamente pelos efeitos e sentidos das histórias. Esse momento, essa pausa de intensa comoção, é, a meu ver, o mais forte motivo por que ler Murilo Rubião.
Rafael Gallo
Escritor, compositor e professor universitário. Seu livro de estreia, Réveillon e outros dias (2012), foi vencedor do Prêmio SESC de Literatura.