Acorda, amor! – A MPB e a censura às biografias não autorizadas
Chico, Caetano, Roberto e companhia defendem o patrimonialismo da memória. Não querem mais ser artistas do Brasil. Contentam-se em ser propriedade exclusiva de poucos parentes e amigos.
1.
Numa bonita canção dos anos 1970, chamada “Acorda, amor”, Chico Buarque cantava uma letra na qual os ditadores aterrorizavam seu sono. Desesperado diante “da dura”, Chico acordava a parceira e contava-lhe o pesadelo que, ao final da canção, percebia-se ser realidade e não sonho. Visado pela censura, Chico assinou com o pseudônimo Julinho da Adelaide, em parceria com um tal Leonel Paiva. Cheia de metáforas e meias-palavras, e sem a assinatura do compositor real, a canção passou pela censura da época. Hoje, Chico Buarque é a própria censura. As vítimas agora são os escritores brasileiros, calados diante da proibição às biografias não autorizadas endossada pelo compositor.
Meu caro amigo Chico, o que aconteceu? Chico hoje está “exilado” em Paris escrevendo seu novo romance (quem dera ele escrevesse uma autobiografia, essa seria também muito bem-vinda). Não obstante a distância, ele apoia artistas do quilate de Milton Nascimento, Djavan, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos e Erasmo Carlos na polêmica que pega fogo no Brasil atual: a questão das biografias não autorizadas.
Capitaneados por Paula Lavigne, a toda-poderosa do grupo Procure Saber (nome paradoxal para artistas que são a favor da limitação da informação), os pesos-pesados da MPB parecem dispostos a tudo para evitar a publicação de biografias que não tenham sua chancela. Chegam até a acusar editores e autores de ganharem fortunas. Isso demonstra um profundo desconhecimento do imenso trabalho de um biógrafo.
Em entrevistas, a empresária Paula Lavigne parece querer deturpar o centro do debate: a questão é que os artistas querem ter exclusividade sobre o que vai ser escrito sobre eles mesmos. Lavigne condena relações financeiras para desvirtuar o debate. O Procure Saber trata o “lucro” do escritor como crime. Qual é o crime de um autor receber pelo seu (árduo) trabalho? Chico e Caetano têm todo o direito de lucrar com sua própria obra, suas músicas, seus textos, seus shows. Mas sobre o trabalho de outrem, não. A não ser que a biografia ganhe a marca de “autorizada”, aí a questão muda. Para isso é preciso censurar a priori toda e qualquer biografia que não passe pelos seus crivos geniais?
Chico, Caetano, Milton, Djavan, Gil, Erasmo e Roberto parecem se enganar em relação ao mercado biográfico brasileiro. Ele é, ao contrário do que dizem, muito diminuto. Caetano, Gil, Erasmo e Djavan, por exemplo, não têm biografias no mercado. Em qualquer outro lugar do mundo, artistas dessa importância já teriam algumas dezenas de obras sobre suas fundamentais participações no cenário cultural brasileiro. Chico tem obras de perfil, como o livro escrito pela jornalista Regina Zappa, mas nenhuma biografia de peso. A obra de Caetano foi esmiuçada por Guilherme Wisnik e ele mesmo escreveu a autobiografia Verdade tropical. Milton tem biografia autorizada. Gil também autorizou Gilberto Bem de Perto, em coautoria com a mesma Regina Zappa. Mas biografia de verdade, isenta, escrita por um pesquisador relevante, capaz de dar conta de grande parte de suas obras e de sua inserção na realidade de seu tempo, em paralelo com a vida desses gênios brasileiros, nenhuma!
O único contemplado, o “Rei”, censurou o livro Roberto Carlos em Detalhes, obra fundamental do historiador Paulo Cesar de Araújo. Roberto acusou Araújo de violar sua intimidade. Mas qual intimidade descrita no livro de Araújo era segredo? Quem não sabia que Roberto Carlos perdera uma perna na infância? Ele próprio cantou esse drama em “O Divã” (1972) e “Traumas” (1971). Quem não sabia do seu relacionamento com Myriam Rios? Ele a cantou em “A Atriz” (1985). E sobre o sofrimento do rei diante da morte de Maria Rita? Isso esteve em todos os jornais e revistas de 1999. Roberto sempre publicizou sua intimidade. Como separar o homem da pessoa pública quando o próprio nunca colocou a si esses limites? Os cantores da MPB, mais do que dinheiro, parecem querer controlar o que será dito sobre eles. Isso é extremamente perigoso. E quando eles morrerem? Quem decidirá sobre isso? A família?
2.
Então é isso, a vida privada será tratada como patrimônio de pouquíssimos, como vem acontecendo? Chico, Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Milton e Djavan defendem o patrimonialismo da memória. Não querem mais ser artistas do Brasil, da sociedade brasileira. Contentam-se em ser propriedade exclusiva de poucos parentes e amigos dignos da honra. É pouco para uma geração que quis mudar, e de fato mudou, o Brasil. Mas ainda é possível que eles percebam do que se trata e mudem de opinião. “Acorda, amor”! Acordem, amores!
Hoje em dia, diante da brecha aberta pela censura de Roberto Carlos, é quase impossível lançar biografia no Brasil. Quando um artista não gosta de qualquer descrição de sua vida em livro, entra com uma ação, ainda que o incômodo escrito esteja documentado. As editoras se tornaram medrosas; seus setores jurídicos, com medo de perder o emprego, entraram em pânico e procuram “cabelo em ovo” para dificultar a publicação. A limitação da informação gera posturas deletérias na sociedade, seja nas vítimas, seja nos algozes. É contra esse embrutecimento que é necessário lutar. É contra este “Cálice” que é “preciso estar atento e forte”.
Os artistas querem que as biografias passem por autorização? Será que irão autorizar verdades que não lhes agradem? Será que daqui a pouco também os jornais e revistas vão ter que pedir autorização para publicar algo sobre a carreira desses artistas? Um inocente pode perguntar: e os casos de acusações infundadas e inverdades publicadas? Ora, onde houver excessos, que venha o peso da lei. Para isso existe o Código Penal. Que se punam os maus biógrafos. Mas, sobretudo, que não se condenem a priori os bons profissionais, aqueles capazes de dar uma dimensão histórica e social à vida de um sujeito. Censura a priori, não — é assim em qualquer país democrático.
Com medo dos excessos, alguns críticos optaram pela prevenção medrosa da censura, como Francisco Bosco, filho do compositor João Bosco. Em duas colunas d’O Globo, o (quase) sempre coerente Bosco argumenta a favor da privacidade em detrimento da liberdade de expressão. É o mesmo veredicto do juiz que proibiu o livro de Paulo Cesar de Araújo, de que Bosco diz gostar. Ele concorda com a censura ao livro? Concorda com os excessos de Roberto? E Roberto está visivelmente se excedendo. Ganha a primeira batalha, prosseguiu sua carreira de censor aloprado. Agora não mais se debate a intimidade. O “Rei”, em épocas passadas um “alienado” sem opinião política, tornou-se nos tempos atuais um militante do seu próprio ego.
A última censura de Roberto Carlos atingiu a obra da pesquisadora Maíra Zimmerman, que havia lançado o livro Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude, publicado este ano. A obra tratava da moda na Jovem Guarda, um movimento cultural dos anos 1960 da maior importância e ainda muito mal estudado, do qual Roberto participou. Não havia menção à intimidade do “Rei”. Mesmo assim, Roberto proibiu a obra. Motivo: não gostou de ser veiculado em livro sem autorização. Qual é o sentido “privado” de tal atitude? Agora vamos ter que pedir autorização de Roberto para falar da Jovem Guarda? Teremos que pedir a Caetano para falar do Tropicalismo?
A questão das biografias não se limita aos artistas da MPB. A questão real é: apenas biografias autorizadas podem ser publicadas? Ou vamos ter que pedir licença aos herdeiros de Getúlio Vargas para escrever sobre o “populismo”? Ou pedir a Lula para falar sobre o Brasil dos anos 2000? Teremos, algum dia, que pedir a José Sarney para falar do Maranhão? Fernando Morais pretende escrever uma biografia de Antonio Carlos Magalhães. Terá que consultar a família do coronel para ver a obra publicada? Isso não faz sentido.
Há outro lado da questão pouco comentado até agora nas discussões dentro e fora da internet. Caetano Veloso posicionou-se contra Roberto Carlos quando esse vetou a obra de Paulo Cesar de Araújo, em 2007. Por que agora, seguindo as diretrizes de sua ex-mulher, Caetano concorda com o “Rei”? Será que o baiano apagaria de sua biografia autorizada o apoio dado a Araújo em 2007?
3.
Enquanto a MPB parece naufragar na mesmice da censura, surgiu um arauto da liberdade: Alceu Valença. O pernambucano foi claro em seu perfil no Facebook ao dizer: “A ideia de royalties para os biografados ou herdeiros me parece imoral. Falem mal, mas me paguem…(?) é essa a premissa??? Nem tudo pode se resumir ao vil metal!”. Alceu, infelizmente, é exceção – o que só engrandece sua coragem e determinação.
Triste é perceber que não é a primeira vez que alguns de nossos mitos da MPB se colocaram a favor da censura e da limitação da informação no Brasil. Roberto Carlos apoiou a censura do governo Sarney ao filme de Jean-Luc Godard, Je Vous Salue Marie, em 1986. Gilberto Gil também se colocou no papel de censor. Segundo o jornalista Pedro Alexandre Sanches, em recente coluna, uma biografia de Gil assinada pelo jornalista Tom Cardoso em 2009 foi desautorizada pelo artista e nunca veio à tona.
Chico Buarque, em exílio parisiense, diferente do sabiá que uma vez cantou, tampouco parece ter saudade de lutar contra a censura. Hoje em dia, ele próprio é o dono da temida tesoura. Uma pena. Há anos Chico se autocensura. Ele próprio proíbe que sua peça Roda Viva (1967) seja reencenada e republicada. Ficamos impossibilitados de reler e rever esse marco do teatro brasileiro. Agora Chico quer proibir as biografias não autorizadas.
É, meu caro amigo Chico, faça como o sabiá de sua canção e volte para o Brasil. Volte para a realidade dos autores nacionais, volte para a luta que durante tanto tempo foi sua bandeira. Ou teremos que fazer valer o direito democrático à informação apesar de você?
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André Martins
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Hugo Silva
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André Martins
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Hugo Silva
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André Martins
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Hugo Silva
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Hugo Silva
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André Martins
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Hugo Silva
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André Martins
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Hugo Silva
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André Martins
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André Martins
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André Martins
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André Martins
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André Martins
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