O perigo das minorias violentas

por Paulo Roberto Silva (28/10/2013)

Graças à violência de uma vanguarda autoritária, o movimento social está perdendo apoio popular

- Destruição no terminal Parque Dom Pedro, centro de São Paulo. [Foto: Flávio Florido/UOL] -

– Destruição no terminal Parque Dom Pedro, centro de São Paulo. [Foto: Flávio Florido/UOL] –

“O fascismo é a expressão política do ódio da pequena burguesia”
Trotski, Revolução e Contrarrevolução na Alemanha

“Hoje, pelo contrário, o homem médio tem as ‘ideias’ mais taxativas sobre quanto acontece e deve acontecer no universo. Por isso perdeu o uso da audição. Para que ouvir, se já tem dentro de si o que necessita? Já não é época de ouvir, mas, pelo contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública em que não intervenha, cego e surdo como é, impondo suas ‘opiniões’.”
Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas

O ascenso do movimento social iniciado nas jornadas de junho está caminhando para um rumo perigoso. Perigoso para si mesmo e para a democracia brasileira. Em junho, o que vimos foi a unidade de diversas fontes de insatisfação da sociedade brasileira não só em torno da questão do transporte como pauta imediata, mas também por uma maior sensibilidade da classe política. Contudo, a divisão entre o homem comum, cuja insatisfação difusa foi muito bem descrita por Lúcio Carvalho no Amálgama, e o militante experimentado alterou a dinâmica do movimento. O homem comum voltou para casa, e as ruas foram tomadas pelos black blocs.

O impacto do black bloc way of life pode ser mais sério do que se apresenta ao militante médio da vanguarda do movimento social. Pesquisa Datafolha publicada ontem mostra que 95% da população paulistana é contra a tática black bloc, e que por conta da violência no lado manifestante, o apoio às manifestações caiu de 89% em junho para 66% agora. O levantamento foi realizado antes da destruição do terminal Parque Dom Pedro. O apoio ainda é alto, mas a queda é expressiva, e podemos atribuí-la à violência excessiva do lado manifestante. Contudo, no meio ativista, a tática tem sido glamourizada, e quem é contra tem sofrido críticas severas, caso do PSTU.

Primeiro vamos entender melhor o que quero dizer quando falo que a dinâmica do movimento social foi impactada pela separação entre o homem comum e o ativista experimentado depois das jornadas de junho. O processo de mobilização foi iniciado pelos ativistas do Movimento Passe Livre (MPL), que há cerca de dez anos vem se organizando na luta pela gratuidade do transporte, desde a Revolta do Buzu de 2003 em Salvador.

A vanguarda que costumeiramente frequenta as manifestações do MPL formou-se na última década em um processo descolado da direção mais antiga do movimento social, incorporada ao governo Lula. Assim, enquanto a esquerda tradicional se tornava governo – a exceção do PSTU e de setores do PSOL – essa nova vanguarda organizava-se em manifestações de cunho pós-moderno: Marcha da Maconha, Parada do Orgulho Gay, entre outras. Esta vanguarda caracterizou-se por seu perfil de classe média e seu discurso antiburocrático, mas também policlassista.

Enquanto isso, a sociedade brasileira atravessou um rápido processo de transformação nos dois mandatos de Lula. Toda uma camada social ascendeu de padrões de vida miseráveis para condições mais remediadas – os chamados batalhadores, precariado, subproletariado, conforme o autor a que você se refere. Ao mesmo tempo, a redução da desigualdade foi bancada às custas da depreciação do padrão de consumo da classe média tradicional, que suportou o aumento da carga tributária sem o equivalente incremento em renda. Os primeiros, ao conquistarem uma vida pouco melhor, passaram a querer mais: educação, serviço público de qualidade, oportunidade de prosseguir com a ascensão. Os segundos romperam com o petismo e se tornaram bastiões do discurso anticorrupção e antiestatismo.

Em junho de 2013, o ativismo experimentado levou às ruas estas duas fontes de insatisfação: o batalhador e a classe média tradicional. Em condições normais de temperatura e pressão, a direção do movimento teria atuado para formar uma nova vanguarda de ativistas a partir desta matéria prima social com que acabavam de ter contato. Neste caso, teriam que construir um diálogo com os preconceitos antipolíticos que estes novos ativistas traziam consigo.

Contudo, a vanguarda formada em dez anos de mobilização pós-moderna viu nos seus novos parceiros um perigo, e confundiu as coisas. Desencadeou-se a campanha contra os “coxinhas”, que atuou para desmobilizar de imediato e retomar o movimento apenas com velhos companheiros. O auge desta separação ocorreu durante a Jornada Mundial da Juventude, quando radicais trataram de ofender o espírito religioso da nova classe média, sem entender que o espírito de Francisco estaria ao lado deles. Faltou a sensibilidade para o fenômeno do conservadorismo popular, que descrevi aqui no Amálgama.

Na falta de massas, os ativistas entraram na onda de glamourizar os black blocs. Assim, são black blocs para defender os professores grevistas do Rio de Janeiro, black blocs para invadir o Instituto Royal e destruir pesquisa científica. Eles se tornaram o braço armado do movimento social. Contudo, graças ao recurso à violência, o movimento está perdendo apoio popular.

O único que se manteve longe deste perigo foi o PSTU. Desde o começou chamou o diálogo com os novos ativistas. E também, desde o início abriu um debate sobre os limites da tática black bloc. Contudo, para não deixar que lhe ponham a pecha de X-9, o PSTU tem se mantido refém da vanguarda que glamouriza a violência, ao evitar denunciá-la como ela realmente é: uma vanguarda autoritária e com desvios fascistas.

O caráter autoritário da minoria violenta tem ficado evidente no mês de outubro. Ao invés de promover a autodefesa do movimento, como dizem seus defensores, os radicais, black blocs ou não, se envolveram na destruição de pesquisa científica ao invadir o Instituto Royal, na invasão de salas de aula de Medicina, em ações que interromperam o fluxo de trens na periferia de São Paulo em pleno horário de pico e no bloqueio do debate com intelectuais contrários ao movimento, como o que aconteceu com Demétrio Magnoli e Luís Felipe Pondé na Flica. Em nenhum destes casos está em pauta uma demanda popular ou classista.

O caso da invasão ao Instituto Royal é exemplar: disseminou-se uma denúncia não fundamentada de maus-tratos aos animais, conclamou-se à violência e instalou-se uma campanha difamatória que pode gerar graves prejuízos à ciência. Não importa à minoria violenta que em defesa do Instituto tenha se levantado entidades científicas como a SBPC, cujo papel na construção da democracia brasileira foi fundamental. Instalou-se uma estação de caça aos cientistas nos moldes da Revolução Cultural de Mao Tsé Tung.

A rejeição de 95% da população à violência black bloc – ainda que a amostra diga respeito apenas a São Paulo – coloca o movimento social em uma encruzilhada. Ou ele se distancia dos violentos protofascistas, ou o clima de rejeição à violência poderá suportar uma reação repressora por parte do Estado, o que pode colocar em risco as liberdades democráticas que trouxeram o movimento social até aqui.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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