Nossa relação com a democracia está um pouco sucateada
Súbita, uma saudade do tempo em que a maior diferença de opiniões entre os amigos era sobre se o Toddy seria melhor que o Nescau ou vice-versa. Dúvida que, aliás, ainda persiste para mim e tantas outras pessoas que só não têm coragem de admitir publicamente o dilema. Na verdade, eu desconfio que nunca a humanidade chegará a algum consenso final sobre isso. Ou, talvez, sobre qualquer coisa.
Nessa mesma época da minha vida, longínqua e irresponsável, não lembro de uma vez sequer ter sido atacado na minha preferência por um outro entre os achocolatados, ainda mais pelos amigos e pessoas próximas. Muito menos de alguém ter-me dito que eu estava sendo estúpido por preferir um ao outro ou ver o rótulo do meu produto do coração achincalhado em montagens deturpadas, notícias frias ou coisas do gênero. Havia, provavelmente, uma noção de respeito pelo outro que o “amadurecimento” deu conta de aniquilar para o bem.., bem.., para o bem de alguma coisa que eu nem saberia dizer o que é.
Nos idos anos setenta, ainda não havia isso que hoje se entende por “memes” nem nada que se parecesse ao Twitter ou ao Facebook. A verdade era chapada e transmitida em preto e branco. E a política, bilateralmente dividida entre dois partidos, MDB e Arena. Mas meu mimimi histórico não tem a menor importância. O mundo parece mesmo que ficou mais complexo desde lá. Esse texto, até este ponto preciso, é apenas um subterfúgio para chegar a um assunto bem mais sério que a disputa entre o Nescau e o Toddy. Ou, pelo menos, deveria sê-lo. Nesse período de eleições presidenciais há algum outro assunto, falando nisso? Não que eu saiba.
Salvo pelos mais interessados, a política é um assunto que não entusiasma muitas pessoas, ao contrário do que pode parecer, mesmo em épocas eleitorais. A algumas pessoas, é um assunto que chega mesmo a deprimir completamente. Mas eu ouso tentar dizer: não é a política, são as pessoas. A política, termo cunhado pelos gregos para designar a apropriação da polis pelos cidadãos, é um termo gasto e vulgarmente utilizado como xingamento até, o que é uma constatação das mais lamentáveis. Se é uma palavra que foi levada a esse tipo de significado por um mau uso, então nosso desafio é tão somente procurar fazer dela o melhor uso possível. Recuperá-la desse atoleiro. O quanto isso nos for possível, claro. Sem exageros, por favor.
Nessa época eleitoral, não foram poucas nem raras as amizades estremecidas em razão de divergências políticas. Mas eu quero pensar que não é a política em si mesma que causa isso. São as divergências e as formas pelas quais as pessoas lidam com isso ou, em última análise, lidam consigo mesmas. São as próprias pessoas e suas qualidades não muito compartilhadas, mas ainda assim muito visíveis: a intolerância, o autoritarismo, a prepotência etc.
Talvez seja exigir demais de relações que, cada vez mais mediadas pelo meio virtual, não comportam grande compromissos pessoais e às vezes as pessoas simplesmente abstraem de que estão falando entre si e não para consigo mesmo. Que suas opiniões chegam aos demais e que a forma pela qual chegam diz mais sobre quem as está emitindo que ao seu destino, que é sempre imponderável e pode ir parar sabe-se lá aonde depois da invenção da internet.
Se há mesmo uma tendência, criada sobretudo a partir da virtualização das relações humanas, à espetacularização das opiniões pessoais ou um tipo de egolatria decorrente de um eu que se afirma apenas sobre uma certa autoidealização e no precário reconhecimento do outro, então talvez seja mesmo inevitável que isso aconteça. Mas aqui também, mais uma vez, não cabe debitar essa dificuldade à tecnologia. Trata-se de uma dificuldade humana que a tecnologia apenas “ajuda” a evidenciar, exatamente pelo dinamismo das trocas conceituais e simbólicas que se faz nesse substrato digital. Mais uma vez, a culpa é das pessoas. Não é possível culpar a existência da internet sobre o que se comete através dela. Seria uma miopia total. Ou um tipo de fuga, talvez.
Há pessoas que percebem no mundo do novo milênio um mundo mais complexo, mais intrincado, repleto de relações de certo modo inapreensíveis. Tenho minhas dúvidas. Tenho a impressão que não mudamos tanto assim, assim como não devemos mudar de comportamento em relação aos demais simplesmente porque envelhecemos e nos arrabugentamos (do verbo arrabugentar, neologismo). Não deveríamos, nesse aspecto, muito antes pelo contrário, melhorar?
Nesse ponto, cabe pensar também que o formato contemporâneo de política representativa e o entendimento de democracia como o mero direito ao voto favorece absolutamente o individualismo, a atomização social. O voto secreto, ao passo em que consiste num momento mais ou menos mágico, não é senão uma forma de destituição da vontade política. O cidadão delega sua potência cidadã a um burocrata que supostamente o irá representar perante o sistema estatal. Esse extravio de potência, de tão violento que é, culmina numa dicotomia odiosa que, ao invés de unir as pessoas e os sentimentos sociais, as pulveriza. E então o que deveria ser a festa máxima da diversidade e da democracia torna-se apenas um festival de rancores e inimizades. Das diferenças no pior sentido do termo.
Ali, na seção eleitoral, com o dedo no botão “confirmar”, o que estamos confirmando, afinal? A foto do(a) nosso(a) candidato(a)? Suas propostas? Suas ideias? As ideias de suas alianças políticas, nem sempre tão evidentes assim? Ou simplesmente nossa falta de opção, reduzidos que fomos ao consumo do marketing político? Seja como for, não votamos em consenso e as opções que temos não nos representam inteiramente, em todas as nossas preocupações individuais. É por isso que às vezes saímos insatisfeitos das seções eleitorais e das urnas. É que ali se processa uma tremenda aniquilação da nossa compreensão social e desejo político.
Algumas pessoas têm dito e defendido que é preciso, para ontem, uma reforma política. Que o sistema atual favorece disputas desiguais, aparelhamento econômico dos partidos etc. Tudo isso é verdade, mas é também verdade que a nossa relação com a democracia está um pouco sucateada. E isso tem menos a ver com o voto em lista do que com a forma com que nos relacionamos com o poder político, cada vez mais centralizado e comandado por estruturas inacessíveis ao cidadão comum. Isso produz necessariamente um dissenso. Um descrédito com a democracia. E algum rancor pessoal, em muitos casos.
Aqueles que desejam reformar a democracia devem lembrar que a democracia não é uma instituição ou um mero canal de empregos. Ela é um bem. Devolver à democracia a condição de bem comum é o desafio oculto das eleições. Encontrar candidatos que preservem ou recuperem essa condição constitui o verdadeiro dever de votar. Pensar nos candidatos como crianças escolhem, no critério do maniqueísmo, entre o bem e o mal, como se entre o Toddy e o Nescau, ainda é o máximo que muitos conseguem e pode ser o caminho do engano que muitas vezes nos custa a admitir em nós mesmos, mas percebemos com intensa clareza nos demais.
Mas enquanto não chegamos a este e outros consensos, cada um deve respeitar a escolha do outro. Em caso contrário, de posse de nossos títulos eleitorais e das melhores intenções do mundo, como os fanáticos que condenamos em outros continentes, estaremos apenas pisoteando o cadáver do que se deveria chamar democracia. Se não fazíamos isso quando éramos crianças, porque então naturalizamos tanto assim a expressão do ódio político? Sem dúvida, há partidos que funcionam quase como religiões, abrigam pessoas que se orientam irracionalmente em dogmas alheios porque lhes falta muitas vezes uma independência crítica e é um caminho mais fácil descer as escadas firmes em um corrimão, como gostava de dizer a filósofa alemã Hannah Arendt.
Como acabamos sabendo mais cedo ou mais tarde, não há escolha certa entre o Nescau e o Toddy, há apenas uma preferência. Há apenas tentativas. Desde os gregos, a política não é o território das certezas, mas também não deve ser o território das guerras ou da eliminação do outro porque, nesse caso, teria se transformado no totalitarismo, mesmo que não usemos mais esse nome e que nossos artifícios de dominação sejam hoje mais sofisticados que espadas e lanças e se encontre mais no território das opiniões, das autoridades ou dos poderes simbólicos. Por isso, se a eleição está servindo a uma espécie de aniquilação do sentimento civil, há algo que está muito errado. Devem ser as pessoas, de novo. Mesmo assim, a democracia deve ser devolvida a elas. O quanto for possível. Não exclusivamente, mas inclusive nas eleições.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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