"Boa noite a todos" se mostra uma experiência interessante
Detentor de um debute ficcional premiado, o jornalista Edney Silvestre criou um universo a partir de Se eu fechar os olhos agora, onde seus personagens circulam e se encontram, descortinando novas histórias. Um mundo cuja plasticidade dá ares do nosso, sendo as longitudes os dramas pessoais e as latitudes os momentos históricos. No recente Boa noite a todos, esses vértices se embaralham num livro que prima justamente pela fragmentação. São três obras dentro de uma, três gêneros literários que orbitam em torno de uma trama diferenciada por nuances estéticas.
Seguindo a estrutura original, iniciemos pela novela.
Maggie, uma mulher de meia-idade, salta do táxi e adentra um hotel. Vestindo uma camisa de algodão “comprada na Via Bocca di Leone”, um suéter de caxemira claro, calças de linho “cor de sorvete de baunilha, confeccionadas sob medida” e sapatos bege, de bico azul-marinho, “adquiridos na Rue Cambon”, hospeda-se numa suíte no andar mais alto. Uma das malas contém três livros, entre os quais títulos de Sylvia Plath e de Florbela Espanca. Pois basta pesquisar os fins destas escritoras, para compreender o propósito da protagonista.
Maggie é refém de uma melancolia aferrada a um processo incontornável de níveis de decadência. O luxo que ostenta é um viso do passado; ela própria é um vulto do que foi. O que resta são lembranças, ou estilhaços turvos delas. Está perdendo a memória e o controle das funções motoras. Portanto se entrega à última escolha consciente, em revide a “ir se apagando pouco a pouco; não só a mente, mas o corpo”.
Ocorre que é uma decisão acessada por fantasmas. Durante o método preparatório para o ato derradeiro (que inclui determinar a vestimenta adequada, deixar um bilhete, selecionar os sais de banho), episódios pretéritos vem à tona, revelando rancores, perdas e autoenganos. Filha de um funcionário do Instituto Brasileiro do Café, Maggie foi conduzida a Londres dos anos 60 ainda menina, depois da morte da mãe. Lá cresceu à sombra da fulgurância da meia-irmã, a quem traiu num relacionamento adúltero e imputou um destino trágico. Teve três casamentos, homens cujo poder de lhe proporcionar status social e riqueza obliterava a cavidade de sentimentos. Sempre foi uma expatriada. De tantos lugares e de nenhum ao mesmo tempo.
Essa é a sua história, ou o drama familiar que patina em meio a lapsos e hesitações. A protagonista confunde nomes de pessoas e de cidades, não consegue percorrer um pensamento por toda sua extensão. Tais lacunas são assaltadas por incidências sonoras, trechos de filmes e de livros, um mosaico histórico-cultural dos anos que abrangem sua trajetória. Maggie recapitula o íntimo e o mundano.
Nesta altura, sobressaem-se dois méritos. Do mesmo modo que em seus livros anteriores, Silvestre consegue evocar o espírito de uma época por meio de referências pontuais, vestígios que, aqui, o leitor é estimulado a decifrar junto a protagonista. Predominantemente um fluxo mental, a novela ainda conta com a intercalação de uma voz em terceira pessoa e a voz da consciência de Maggie. Uma opção arriscada perante a qual o autor se sai bem, valendo-se de segurança e de habilidade técnica.
Os últimos parágrafos são puxados pelo descarrilhamento de um devaneio que casa alguns pedaços de recordações, oferecendo um final coerente. O livro, então, cede espaço para a peça de teatro que estruturalmente sintetiza e subtrai passagens do texto em prosa, referendando a força do monólogo que o originou.
Chega-se assim à última parte, que compreende ao ensaio, onde é assuntado os bastidores, o engenho criativo que produziu as duas obras anteriores. Silvestre revela a gênese da história e fecha pontas abertas no naufrágio psicológico da sua narradora, transformando o título num interesse experimento literário, funcional em suas três partes, ainda que não seja recomendável pular para o ensaio antes da leitura da novela ou da peça.
Buscando uma analogia no teatro, Boa noite a todos é merecedor de aplausos ao cerrar das cortinas. Não de pé, como nos dois primeiros romances do autor. Aplausos que se flexionam sob o peso liquidante das luzes.
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
[email protected]