Como movimentos de justiça social acomodam extremistas.
Como, pouco a pouco, extremismos vão tomando espaço nos ativismos?
O assunto é complexo e daria para fazer pesquisa com isso, mas vou escrever algumas poucas linhas a respeito, baseadas em alguns anos de experiência e observação.
Para a compreensão avançar um pouco nesse assunto, algumas coisas sobre nós devem ser entendidas: nós costumamos formar tabus e censurar nossas próprias habilidades críticas em torno deles. Temos a tendência ao pensamento de coalizão: concordar com quem tem sinais de estar em algumas das tribos das quais fazemos parte e baixar defesas críticas quando afirmam coisas problemáticas, e elevar exageradamente os muros dessas defesas quando as afirmações partem de membros de outras tribos, especialmente se forem tribos rotuladas como inimigas. Geralmente, fazemos isso sem perceber. Mas as coisas ficam piores quando esses vieses se tornam explícitos, conscientes e incentivados.
Por exemplo, se me vejo como alguém de esquerda e me confronto com uma ideia complicada – por exemplo, se um Banco Central independente é uma boa ideia – na falta de tempo, motivação ou capacidade de entender o que está em jogo, eu parto para concordar com algum consenso da esquerda a respeito e desconfiar de algum consenso da direita. Isso não é uma atitude necessariamente irracional: quer dizer que, na falta de recursos fundamentais para tomar decisões idealmente reflexivas (incluindo tempo), busco o conforto de confiar na comunidade que mais parece compartilhar meus valores.
Não é uma decisão necessariamente irracional, mas é uma decisão perigosa e propensa ao erro. Afinal, bem sabemos que não há garantia de uma opinião estar correta só porque é emitida por quem acertou no passado. Especialmente se parte de alguém que deixou de lado uma ideia mais cuidadosa e ponderada de ética e justiça e foi às raias do extremismo.
Há extremismos recorrentes nas causas sociais. Extremismo ativista é:
– O fato de que uma quantidade substancial de pessoas autointituladas feministas defendem, hoje, ideias claramente sexistas. Parece de uma fantasia orwelliana, pois feminismo é anti-sexismo para boa parte de quem se dedica ao assunto, mas é o que está acontecendo. O extremismo neste caso é um fervor moral com uma posição supostamente pró-igualdade (e respeitada como tal) que acaba incorrendo em defender injustiças desiguais, caindo em contradição. É comum observar nas redes sociais a desqualificação e descarte de argumentos de alguém em função de seu “gênero errado”. Quando se desqualifica a opinião de alguém por causa de seu gênero, automaticamente incorre-se em sexismo, pois uma pessoa é declarada culpada em função de uma categoria de gênero à qual pertence. Diferentes acadêmicos estudaram esse extremismo e lhe deram nomes diferentes: Christina Hoff Sommers o chama de “gender feminism”, David Benatar o chama de “partisan feminism”, Janet Radcliffe Richards diz que essas ideias são “lixo absoluto”, e Daphne Patai sequer se dá ao trabalho de dar um nome novo, preferindo se focar em denunciar as ideias corruptas que tomaram cada vez mais espaço na academia norte-americana neste campo. Motivos são apresentados para a defesa desse extremismo, e tratarei deles adiante.
– Uma atitude comum de (1) tomar uma interpretação única e não-consensual de uma mensagem ou declaração, rotulá-la com o adjetivo negativo denuncista mais popular para a questão, e (2) classificar quem discordar dessa interpretação na mesma categoria “inimiga”, geralmente com o mesmo adjetivo. Isso acontece bastante no movimento LGBT e no movimento anti-racismo. Se você não concorda que Levy Fidélix seria enquadrado como incitador de violência na tecnicalidade do que a lei prevê, especialmente se você disser isso sem fazer a concessão de que ele fez discurso de ódio, você é tão homofóbico quanto ele, especialmente se você não for LGBT. Se você tiver outra interpretação da campanha “somos todos macacos”, ou quiser avançar uma interpretação alternativa informando às pessoas que (xingamentos racistas à parte) essa afirmação não contraria a biologia, você só pode ser tão racista quanto a garota que xingou um jogador negro de “macaco” num contexto diferente (e claramente racista) – especialmente se você não for negro(a).
Esses são exemplos do comportamento extremista, que parece ser raro entre ativistas, especialmente em suas formas mais absurdas e ilógicas. O que não é de forma alguma raro, no entanto, e que começa a responder a pergunta inicial (como extremistas ganham espaço?) é uma atitude que se encontra mais no mainstream: a atitude acomodacionista. E para entender a atitude acomodacionista, precisamos nos lembrar do pensamento de coalizão: “estão no meu time, então devem estar com a razão”. E do tabu: “eu não concordo com isso, mas se eu criticar serei visto como inimigo, perderei amizades, prejudicarei a causa, então não critico”.
Com esses vieses que são, frequentemente, inconscientes, juntam-se ideias acomodacionistas que servem para diminuir o desconforto mental (chamado de “dissonância cognitiva”) de se perceber quase caindo em contradição ao fazer vista grossa para extremistas enquanto se está participando de um “movimento”, um esforço de ideias e ações, para defender coisa oposta ao extremismo: equidade entre gêneros, equidade entre orientações sexuais e identidades de gênero, equidade entre etnicidades e fenótipos outros, igualdade de oportunidades, liberdade contra o julgamento preconceituoso, enviesado, discriminador. Eis um resumo das ideias acomodacionistas:
– A ideia de que é justificado praticar o sexismo de desqualificar opiniões por causa de gêneros porque quem é mulher tem mais experiência direta (empírica) com o peso da discriminação sexista (misógina/machista). Essa ideia, nesse e em outros formatos, surgiu independentemente várias vezes dentro de movimentos mais experientes como o feminismo. Ela é reaplicada, de forma análoga, aos outros temas das causas sociais (movimento LGBT, movimento negro, etc.), geralmente com um conceito mal definido de “opressão” e uma percepção bem maniqueísta de opressores e oprimidos. Basicamente, a ideia pode ser resumida como privilégio epistemológico (privilégio relativo ao conhecimento) de oprimidos. A resposta a essa ideia não é difícil. Se ser oprimido é ser privado de recursos, um resultado disso é ter mais, não menos, dificuldade de interpretar o problema e propor soluções. Aliás, essa objeção é uma ideia comum em política: diz-se que os políticos corruptos oprimem com a ignorância o eleitorado para que o eleitorado continue os reelegendo. Se o eleitorado oprimido perde a capacidade crítica sobre seu voto, por que mulheres oprimidas com a misoginia não perderiam suas capacidades críticas para com a discriminação sexista, LGBT oprimidos por homofobia e transfobia não perderiam sua capacidade crítica para com esses preconceitos, e assim por diante? Não estou alegando que aconteça com frequência, mas sabemos que acontece. Ativistas experientes devem se lembrar da última vez que viram alguma pessoa alvo da “opressão” manifestando uma ideia que garante que a discriminação contra si e outras pessoas do mesmo grupo “oprimido” continue. Exemplos de que a tal “opressão” realmente contribui para turvar e dificultar a compreensão dos “oprimidos” sobre sua própria tribulação não faltam, infelizmente. Minha conclusão aqui é que, enquanto é verdade que pessoas que sofrem uma discriminação e preconceito específicos têm em média um conhecimento imediato do que é ser vítima deles, o que fazem com esse conhecimento empírico passa obrigatoriamente pelas suas capacidades de análise, que dependem de suas ideias muito mais do que de suas experiências como vítimas. E para ser capaz de analisar alguma coisa, basta ser um membro da espécie humana sem necessidades cognitivas especiais. Todo o conhecimento empírico obtido com a vitimização pode ser obtido por relato – ou ao menos a parte relevante desse conhecimento. Ninguém precisa se submeter a queimaduras para entender que queimados têm necessidades urgentes.
– A ideia de que só merece desaprovação veemente o preconceito que estiver “institucionalizado” ou na “estrutura” social. Aqui, aproveita-se da obscuridade: está longe de claro que seriam instituições e estruturas. Um grupo no Facebook em que se incentiva o ódio ou o preconceito contra “opressores” não seria uma “instituição” ou uma “estrutura”? A partir de que ponto um grupo que se organize para odiar e reforçar preconceitos passa a ser instituição ou estrutura? Há um número limite? Um tempo limite de existência? A ideia de que preconceitos só passam a ser moralmente condenáveis se forem “estruturais” e “institucionalizados” é, claramente, absurda. Essencialmente, equivale a afirmar que não saberíamos que o antissemitismo é errado se o Holocausto e as perseguições anteriores a judeus não tivessem acontecido. Se aprendemos alguma coisa com a História, preconceitos e discriminações injustas são errados e devem ser condenados antes que formem instituições e estruturas (seja lá o que isso for), é melhor prevenir do que remediar.
– Permeando as ideias acima e outras ideias, há uma tese que pode ser resumida assim: as opiniões que as pessoas expressam são inteiramente fruto de seus interesses e podem ser reduzidas a eles. O resultado dessa tese é que a mudança de opinião só pode acontecer se for completamente baseada em imposições e quedas de braço, antes de ser um espaço para debates, correções de erros e refutações. Pessoas que aceitam essa tese explícita ou implicitamente também costumam acreditar que a história é (ou deve ser) completamente uma sucessão de conflitos de forças cegas, como se as pessoas fossem, individualmente ou em seus coletivos, puro interesse e zero razão. Talvez uma profecia autocumprida, quando usam essa ideia para defender extremistas que de fato pouco interesse têm em discordância razoável e argumentada. É justamente por causa da redução de opiniões a interesses que, nos exemplos dados de extremismo, ser heterossexual, “branco” e homem são “agravantes” nas opiniões não toleradas. Essa visão das coisas mal consegue disfarçar sua acompanhante: uma perspectiva pessimista sobre a educação, em que as pessoas (especialmente as donas do “poder” ou detentoras de “privilégios”) não podem ser convencidas pelo debate, apenas dobradas pelo embate. Toda essa tese tem uma dívida inegável com o movimento do pós-modernismo, mas também com erros comuns que as pessoas cometem por falta de reflexão crítica.
O reducionismo a interesses é uma marca clássica do pós-modernismo, um “movimento” intelectual baseado quase que completamente em tentar botar em descrédito as conquistas intelectuais do iluminismo e do humanismo, que enfatizam que, antes de serem postas em categorias (naturais ou artificiais), as pessoas compartilham uma humanidade em comum, uma racionalidade em comum, e podem chegar a consensos ao examinar premissas com que todas as pessoas podem concordar. O iluminismo e o humanismo são, em resumo, universalistas – defendem que o que é verdadeiro e moralmente correto não é relativo a culturas e subjetividades. Enquanto o pós-modernismo caiu largamente em descrédito no mundo intelectual, setores menos “intelectualmente progressistas” tanto da academia quanto dos movimentos sociais são pós-modernos sem saber.
Não por acaso, botar em descrédito ideias de universalismo tanto de conhecimento quanto de ética vem com o preço de chocar o ovo da intolerância. Começa-se tentando defender os oprimidos, e termina-se batendo palmas para o próximo aiatolá autoritário que tomar o poder para “resistir” a uma ameaça real ou imaginada. Acredita-se estar no topo da corrente das ideias, mas na verdade o que se está promovendo ao acomodar extremistas é dar espaço para velhos vieses – o comportamento de manada, os vieses cognitivos, as conclusões precipitadas e as leis antigas baseadas em vingança. Promove-se, enfim, uma visão de mundo em que há uma pressa no gatilho da acusação de culpa em problemas que decorrem frequentemente da ingenuidade, da miopia, da infância.
Do ângulo de onde estou observando, não vejo qualquer razão, não vejo qualquer virtude, em tolerar pequenos aiatolás e suas fatwas intolerantes em qualquer ambiente, seja virtual ou real; por qualquer intenção, seja boa ou má. Fazer o contrário é perder credibilidade e promover injustiça.
Eli Vieira
Biólogo (UnB), geneticista (UFRGS e University of Cambridge), humanista, pensador.
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