O gesto de Rodin

Um homem detrás do homem. Um homem detrás do corpo de linguagem esculpido por ele.

Museu-Rodin---Paris

Saboreando vagarosamente os jardins do Museu Rodin, em Paris, nesse verão, em um de seus belos cantos, entre esculturas monumentais, fui capturada pelo gesto de uma delas. O que pode um gesto?

Um corpo de homem. Um corpo: matéria. Uma mão se estende no espaço. E, num gesto largo, parece nos convidar a caminhar, a seguir com esse corpo.

Um corpo de homem que está do nosso lado. Um corpo esculpido de homem entre homens. Um corpo que não está em cima de um pedestal nem cercado por um gradil. Um corpo em contato com outros corpos simplesmente. Um corpo que está junto do corpo do espectador: um corpo entre corpos. Um homem entre homens. Um homem entre as mãos daquele que o criou e os olhos de quem o seu corpo esculpido é dado a ver. Um corpo entre dois corpos: o do seu criador e o do espectador.

Um corpo de homem que está do nosso lado realmente. Um corpo esculpido com realismo. Um corpo que expressa a “pele” humana. Um corpo que representa a “carne” que constitui todo homem e toda mulher. Um corpo de homem esculpido com a matéria que nos faz humanos.

Um corpo de homem em que a beleza não se esgota na forma. Um corpo em que a beleza não é dada para o nosso prazer visual somente, mas para além da fascinação do olhar que se prende e se fixa na miragem da forma perfeita, pois há uma segunda beleza a se descobrir – uma beleza em segundo plano, em seguida, na cena seguinte. Uma beleza num corpo de homem cuja estética vai além da forma perfeita dos padrões clássicos. Um corpo em que há uma segunda beleza: a não idealizada porque belo é o corpo humano, o corpo feito de matéria humana.

Um corpo de homem com um corpo de linguagem não domado pela forma idealizada. Um corpo de homem esculpido com a linguagem de seu criador ao lado do corpo do espectador com a sua própria linguagem. Um corpo de linguagem entre corpos de linguagem. Um corpo de linguagem que se dá a outros corpos de linguagem, mas avisa: meu corpo é humano. E, entre os corpos de linguagem, Auguste Rodin (1840-1917) que desprezava o idealismo.

Um homem detrás do homem. Um homem detrás do corpo de linguagem esculpido por ele. Um homem entre o corpo de linguagem esculpido por ele e os corpos de linguagem aos quais o corpo do homem é dado a ver. Por que a mão aberta estendida no espaço, Rodin? Talvez a pergunta não seja por que, mas para quê.

O que não foi dito, como num poema, fica para o espectador dizer. Fica para uma conversa subjetiva naquele que não vê o que não lhe foi revelado para que assim, e somente assim, possa ver. Possa depois dizer. Possa depois significar. Possa depois, no seu próprio corpo de linguagem, experimentar o significado que não é dado pelo criador, mas por ele mesmo com a sua subjetividade, pois há um sujeito bem vivo no corpo esculpido por Rodin que não nos deixa passar por ele inadvertidamente. Que sujeito é esse?

Um sujeito que não desdenha a subjetividade, talvez. Um sujeito atravessado pela subjetividade no seu próprio corpo. Um sujeito com suas marcas dentro de um corpo e que por meio dele se dá ao outro. Um sujeito que talvez saiba que tristeza e dor não estão fora da vida, pois pertencem à matéria que o faz ser humano e não outra coisa. Um sujeito que talvez aceite que o homem nem sempre sabe o que fazer com seu desamparo e também não sabe o que fazer depois da queda, nem sabe, sobretudo, se há o que fazer. É da vida o corpo de linguagem tombar, em algum momento.

Um sujeito-homem que sabe da sua dor. Um homem que se permite expressar a sua dor. Um homem cujo semblante estampa a matéria de que seu corpo é feito. Um homem-sujeito da sua dor. Talvez o homem representado por Rodin saiba que não há como alcançar um ideal de masculinidade nem como viver a vida que se tem para viver como homem idealizado. Ele prefere a dor de ser humano. Prefere não se engessar numa forma de super-homem porque ela não o protege da queda. E, nem por isso, no tombo, ele deixa de ser homem.

A mão que corta o silêncio do espaço no tempo do Rodin e no nosso tempo me levou a pensar na temporalidade desse homem. Hoje, como ele estaria diante da virtualidade entre corpos que não são corpos, mas imagens de corpos? Entre faces que não são faces, mas imagens de faces? Talvez esse homem ficasse atordoado com o contato intermediado pelo touch entre imagens de faces e imagens de corpos. Talvez nem entendesse tanta virtualidade entre as faces e os corpos.

E Rodin talvez se divertisse muito com nossas faces nas redes sociais. E o que diria da estética do selfie? Selvagem permanece o espelho entre o corpo humano esculpido por ele e o corpo do espectador.



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