Jacques Rancière reflete sobre democratas incomodados com a participação política do “povão”
Brasília, 26 de outubro de 2014, 20h. Assim que o TSE divulgou o resultado parcial da apuração, o chorume tomou conta das redes sociais. Foi um chorume anti-Dilma, mas poderia ter sido um chorume anti-Aécio. Afinal, em 5 de outubro já havia rolado um chorume deste tipo contra a reeleição de Alckmin no primeiro turno e a eleição de uma bancada parlamentar mais conservadora que a atual (eu participei desse chorume, confesso).
Por isso, não podia ser menos oportuna a leitura de Ódio à democracia de Jacques Rancière. Escrito há 9 anos, o texto reflete sobre um momento particular da história europeia recente que se assemelha um pouco à situação brasileira atual. Em 2005 os políticos franceses, gaullistas e socialistas, foram derrotados em um plebiscito sobre a chamada “Constituição Europeia”. Chamado a referendar um acordo já assinado, o eleitorado francês achou por bem ter um papel ativo nesse processo e disse não, criando uma crise para o processo de integração continental.
Rancière não reflete sobre o plebiscito, mas à reação a ele. Em seu livro, o filósofo francês analisa um tipo de crítica à democracia que não questiona as instituições, mas “o povo e seus costumes”. Para eles, o problema é que a democracia é “real demais”. Ou seja, o poder emana do povo, mas espera-se que esse povo se comporte conforme certos padrões desejados pela elite política.
Assim parece ser conosco. Como na França, quando o eleitor comprou o discurso da extrema direita e extrema esquerda contra a União Europeia, aqui também uma escolha inesperada do eleitor/cidadão – junho de 2013, rolezinho, eleições – coloca a classe política e a claque que os segue em estado de estupefação. Basta ver o curto-circuito mental que afeta essa gente esclarecida diante desses fatos que fogem ao senso comum.
Onde está o problema? Para Rancière, a política se faz na contraposição entre a democracia e o governo oligárquico. A partir de uma reflexão que remonta a Platão e passa por Hobbes e Rousseau, o filósofo apresenta a democracia como o governo dos desqualificados para o governo, em oposição às escolhas com base em competências – o mais forte, o mais rico, o mais sábio. No exercício democrático, esses critérios sistematicamente apresentados pelos partidos para qualificar o melhor governo – o mais competente, o mais alinhado ideologicamente – são expostos à desconstrução pela ideia revolucionária de que qualquer um pode governar. A este equilíbrio instável entre democracia – governo de qualquer um – e oligarquia – governo dos melhores – Rancière chama de política.
E o que leva a Boitempo a publicar a tradução deste texto justo agora? A orelha escrita por Renato Janine Ribeiro, que incorporou a leitura de Hobbes por Rancière em seus trabalhos e já coordenou a edição de outro texto do autor, entrega:
um número expressivo de membros da classe média os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando os polloi – a multidão – ocupa os espaços antes reservados às pessoas de ‘boa aparência’, uma gritaria se alastra em sinal de protesto
Renato Janine mira no que viu e acerta o que não viu. Sim, de fato a ascensão da chamada classe C incomoda uma certa classe média tradicional. Mas, sinto informar, esse incômodo é maior e afeta inclusive aqueles que posam como “defensores dos pobres”. Porque, como Rancière acaba demonstrando, também esses esperam da massa um certo “bom comportamento” – e quando essa massa elege o coronel Telhada, também essa elite de esquerda fica incomodada e acha que existe “democracia demais”.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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