Há um certo cinismo por trás das histórias que nos são apresentadas, mas também a doçura típica daquele que entende o quanto é difícil ser.
Primeiramente, gostaria de dizer o quanto é doloroso escrever sobre uma obra composta de contos. O livro de contos é incômodo por si só, porque é feito de camadas, de seções, de pequenos microcosmos que nem sempre apontam para o mesmo local. É necessário desvelar esses microcosmos o máximo possível a fim de encontrar um lugar-comum que nos ajude a “definir” o conjunto. Esse lugar-comum, em Petaluma, seria a maneira como, através do insólito, despertam-se reflexões acerca do cotidiano.
Terceira obra de Tiago Velasco, jornalista, carioca, mestre em Comunicação e Cultura e doutorando em Letras, Petaluma é composta por uma escrita simples, sem grandes masturbações intelectuais, dinâmica e ácida. Há um certo cinismo por trás das histórias que nos são apresentadas, mas também a doçura típica daquele que entende o quanto é difícil ser. Ser humano. Ser alguém. Só ser.
Um paciente que desperta, subitamente, em uma cama de hospital, conta-nos, “Em Pedaços”, flashs de sua vida passada que tenta desvendar sob rachaduras de esquecimento. Um conto sobre pertencimento (ou desprendimento?) existencialista, frenético. Existe algo mais assustador do que a liberdade completa? Não há prazer maior que pautar sua existência em você mesmo, sem ter mais ninguém (?).
Ao ler “A Morta de São José” deparamo-nos com o cadáver de uma indigente. É com plena concordância que os habitantes da cidade decidem, após várias deliberações e tentativas de descobrir a identidade da moça, sua completa inexistência. Uma crônica sobre os invisíveis que nos cercam, jogados pelas ruas, inexistentes perante os olhos da lei e do povo.
Nunca estive no Rio de Janeiro. É com bastante vergonha que declaro isso. Contudo, em “Estrangeiro” senti que fui muito bem acolhida, diferentemente do narrador: “às vezes, sonho que saio de casa e não consigo voltar no fim da noite, não reconheço o caminho que fiz pela manhã, os prédios, as lojas, as pessoas, todas estão mudadas”. Um dos contos mais categóricos da obra, este discorre sobre um carioca que se sente turista em sua própria cidade natal, falando, a partir de certo momento, em espanhol. A linguagem como forma de identidade, tema recorrente no livro, pois também aparece no conto-título “Petaluma”, é apenas mais uma das facetas da necessidade de pertencimento do homem no seu próprio mundo.
Gabriel, por sua vez, ao escrever o “Obituário” do pai, relembra, com ares freudianos, os fantasmas de família que assombram sua vida de adulto. Dizem ser necessário “matar” os próprios pais a fim de poder viver como um indivíduo completo. Com este conto temos tal confirmação presente.
Outros elementos permeiam a obra de Tiago Velasco, como o realismo-fantástico, claramente inspirado em Borges, Cortázar e Kafka, influências mencionadas mais de uma vez no texto: há o casal que, depois de 40 anos de casamento feliz, acorda grudado; há, ainda, o executivo cansado do trabalho que, após meses de desemprego e de tentativas de autoquestionamento e niilismo, passa a ver os trabalhadores ao seu redor como criaturas sub-humanas com ares de peixe e réptil (há que se ter sangue-frio para trabalhar) e há, por fim, “Petaluma”.
“Petaluma” é um conto autoficcional do autor sobre quatro meses de trabalho como busboy em um restaurante de mesmo nome em Nova York. O autor-personagem lida, então, com todos os temas explorados nos contos anteriores: identidade, mudança, sensação de não pertencimento, desprezo, solidão, questionamentos com relação à natureza do homem, à natureza do trabalho, sensação de invisibilidade perante a lei, perante a sociedade, insatisfação com o ser.
Tiago Velasco diz ter percebido, apenas após a volta ao Brasil, a forma como Petaluma deixou-o traumatizado, tendo sido, em minha livre interpretação, seu inferno de Dante. Esperemos, então, que ele encontre outros infernos, passe pelo purgatório e alcance o paraíso, mas não deixe de nos atingir com sua escrita de experiência, transição e maturidade.