O livro dos insultos de Diogo Salles

“Abatido pela preguiça, buscando um sofá para chamar de seu, o gigante adormeceu”, escreve Diogo.

"Trágico e cômico: Os protestos em charges", de Diogo Salles. (Primavera Editorial, 2014, 72 páginas)

“Trágico e cômico: Os protestos em charges”, de Diogo Salles. (Primavera Editorial, 2014, 72 páginas)

Consenso: as Jornadas de Junho de 2013 denunciaram o que algumas pesquisas de opinião, aqui e ali, já confessavam aos leitores mais atentos: os políticos estão em total descrédito no Brasil. Esse processo não aconteceu da noite para o dia, mas, de algum modo, os protestos marcaram uma inflexão no estado de permanente bonomia da sociedade para com seus representantes. Houve, inclusive, quem acreditasse que estávamos diante de um fenômeno novo: o gigante acordou, diziam os mais crédulos…

Ao ler o parágrafo acima, o cartunista e escritor Diogo Salles diria: “não tão rápido; não é bem assim”. Para ele, os políticos não se emendam, mas a culpa não é só deles. Em Trágico e cômico: Os protestos em charges, obra que pode ser entendida como um libelo provocador contra a mesmice analítica das questões políticas e públicas do Brasil, Salles não perdoa ninguém: políticos em geral, oposição, situação, pundits, coronéis da MPB, comentaristas da internet. Seu humor é do tipo sardônico, capaz de estimular aquele riso nervoso no leitor – exatamente porque, de algum modo, também nos sentimos atingidos por essa crítica mordaz.

Assim, numa tradição que remonta a Millôr Fernandes e H.L. Mencken (duas referências declaradas), o autor se esmera em correr numa raia independente da crítica de costumes e de política no Brasil. Desse modo, o leitor não pode e não deve esperar condescendência com a “realpolitik” para as questões relacionadas à governabilidade. Se o seu candidato escolheu a coalizão de resultados, o azar é só dele: Salles não perdoará e sua pena vai desferir mais um golpe, utilizando como arma letal as contradições desses mesmos políticos que, macunaímicos, optam pelos distensão em vez de reafirmar seus valores e princípios.

A certa altura do livro, esse viés contra tudo e contra todos pode provocar uma dúvida: seria Diogo Salles um descrente incorrigível? Alguém que sempre está olhando o lado negativo das coisas? Millôr Fernandes responderia que o otimista é um mal-informado, e a verdade objetiva é que o autor toma como matéria prima de sua leitura do mundo eventos que não apenas aconteceram, mas que foram amplamente divulgados, como o caso da ministra de Estado pega numa frase infeliz; ou do deputado que se lixava para a opinião pública, dois momentos impagáveis pelo aspecto simbólico que as ilustrações conseguem capturar. Uma nota ao fim do livro dá conta de que uma parcela significativa das charges foi preparada entre 2007 e 2012, quando o autor militava na imprensa diária, mais precisamente no Jornal da Tarde, veículo que foi “descontinuado” a partir do segundo semestre de 2012.

O dado mais curioso é que esse conteúdo não esteja datado. Em outras palavras, tanto os textos como as ilustrações são de uma atualidade incômoda, uma vez que, de um lado, evidenciam que a geleia geral da política permanece; e, de outro, que seus protagonistas ainda são os mesmos. É de se destacar aqui, por exemplo, o trecho em que ele resume os argumentos da militância bipolar da política brasileira. Assim diz o autor: “usando sua indignação seletiva como instrumento político-partidário, petuscos e tucaneiros promovem uma guerra de desinformação na imprensa e nas redes sociais, servindo como lacaios do baixo governismo (e oposicionismo)”. O texto prossegue com Salles identificando as máximas da retórica de lado a lado – de certa forma, o autor se regozija com essa polarização, exatamente porque tal raciocínio binário facilita seu trabalho.

Ao falar dos partidos políticos, o escritor observa que a configuração atual estabelece um modelo que afasta as legendas de suas causas originais, ao mesmo tempo em que abre espaço para a abertura de partidos com bandeiras que são substituíveis ao sabor dos ventos. De acordo com Salles, é esse “pragmatismo” que faz com que os partidos sejam controlados por meio de chantagem das legendas mais fortes. É essa interpretação de Diogo Salles que norteia todo o seu trabalho como cartunista. O traço ferino do cartunista se origina no entendimento de que a ideia de que o Brasil ainda é viável, desde que exista comprometimento do debate sério, encarando os problemas de frente. É nesse sentido que, no posfácio, o autor assevera que “só tem uma forma de saber se os protestos valeram a pena: se, a partir deles, aprendermos a valorizar o voto e a questionar nossos ‘jeitinhos’”.

Quem acredita que Diogo Salles revela uma mensagem de esperança ao final se frustrará com a última ilustração e o último texto do livro: “abatido pela preguiça, buscando um sofá para chamar de seu, o gigante adormeceu”.



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