FHC procura estimular no PSDB uma consciência de liderança perdida pelo partido há muito tempo.
O novo livro de Fernando Henrique Cardoso é uma coletânea de artigos de ocasião (ou, como o autor prefere chamar, “crônicas”), complementada por textos de discursos proferidos pelo ex-presidente nos últimos cinco anos, todos escritos para agradecer o recebimento de várias honrarias, como o prêmio Kluge e a aceitação na Academia Brasileira de Letras. Reuniões de textos como essa permitem reconhecer melhor seu autor, por vezes afeito a sugerir mais que dizer, especialmente em momentos nos quais seus textos equivalem a manifestações políticas destinadas a influenciar debates eleitorais.
Começando pelo fim, os quatro discursos de FHC compilados no livro oferecem bons resumos de sua trajetória acadêmica e política, entremeados por discussões de temas recentes que lhe interessam mais de perto. Destaca-se entre eles “Reinvenção da democracia”, texto lido na Universidade Roosevelt que elege a liberdade como inspiração para que se atinja cada vez mais o ideal democrático.
Mas é nos artigos de jornal, combinados a outro texto que comentarei no fim desta resenha, que se encontra o conjunto mais esclarecedor das preocupações recentes de FHC. Alguns temas são recorrentes e compõem um cenário no qual o ex-presidente desenvolve suas críticas ao “lulopetismo”, termo por ele utilizado desde 2010. Apesar de, em vários aspectos, tratar-se de uma coletânea sobre o governo Dilma e seus fracassos políticos e econômicos, as recorrências acima citadas ganham bastante relevo e expõem francamente a visão de mundo e os desafios presentes e futuros que FHC enxerga.
O primeiro deles é a defesa de seu governo e a afirmação do projeto tucano como a verdadeira agenda reformista e progressista no Brasil. Os sucessos dos governos petistas são analisados sempre à luz do caminho trilhado pelo país desde o Plano Real e as reformas realizadas entre 1995 e 2002, de modo a fortalecer a percepção de que os avanços sociais encontram sua base na estabilização da moeda e nas reformas institucionais construídas no governo FHC. Como era de se esperar, os aspectos positivos do governo Lula são aqui interpretados como continuidade de um projeto social-democrata essencialmente tucano, enquanto os aspectos negativos são vistos como persistência do atraso, referendado e cooptado pelo PT.
É compreensível que Fernando Henrique não aponte algo que ele mesmo disse alguns anos antes: “nós [PSDB e PT] disputamos quem é que comanda o atraso”. A luta política imediata impede análises menos parciais, e a própria característica assertiva do PT em identificar no governo FHC muito mais atraso que progresso inspira o movimento contrário. Mas seríamos injustos se víssemos apenas um aspecto sectário na constante afirmação do projeto tucano como a melhor agenda para o progresso brasileiro; FHC está com isso procurando estimular no PSDB uma consciência de liderança perdida pelo partido há muito tempo. Assim como os petistas, os tucanos se acomodaram demasiadamente nos últimos anos, deixando de construir alternativas políticas aos nossos impasses. E esse é um dos motivos mais evidentes da atual crise.
O segundo tema se liga a essa acomodação: como resolver nossas questões em um ambiente político totalmente transformado, no qual as análises sociais antigas, que embasaram a doutrina de nossos partidos e homens públicos mais relevantes, já não fazem mais sentido? FHC está constantemente relembrando as novas redes de comunicação e seu potencial para concebermos outros modos de atuação política; também não deixa de assinalar as modificações sociais profundas das últimas décadas, especialmente quando fala das novas classes médias. Inúmeros textos lidam com esses pontos, mas raramente chegam a esboçar novos parâmetros de análise que nos permitam superar aqueles que estão ultrapassados. Sua insistência no tema é indício de que não lhe faltou reflexão, mas sobram desafios e somente um esforço coletivo – e político – pode chegar a algum lugar.
O que me leva ao terceiro aspecto recorrente: essas transformações não são exclusivas do Brasil, e a percepção de FHC está sempre levando isso em conta. Muitas de suas crônicas começam ou terminam por um apanhado de questões geopolíticas, analisando como o cenário internacional se apresenta quase tão misterioso quanto o nacional. Sua formulação por vezes apresenta outros países como exemplo para o Brasil, mas é muito mais frequente a caracterização do mundo à nossa volta como parte de um dilema: o que seremos no mundo, para o mundo, com o mundo? FHC, cinquenta anos depois da formulação da famosa “teoria da dependência”, segue preocupado com as formas de interação internacionais e o que estas representam para o Brasil, tanto interna quanto externamente. Assim como nos pontos anteriores, sobram desafios interpretativos, mas sobretudo normativos: o que fazer?
É bastante interessante, portanto, voltarmos ao texto “O papel da oposição”, presente no volume e publicado em 2011. À época, causou polêmica pela afirmação de que o PSDB deveria se conectar com as novas classes médias, pois o “povão” estaria inevitavelmente perdido para o PT. Reler o texto agora, sob outro contexto, permite enxergar todas as questões delineadas acima em uma chave diversa: como a oposição deve se comportar e como efetivamente se comportou, não só após a publicação do texto e durante a campanha eleitoral do ano passado, mas também no atual momento. É inevitável perceber que a insistência de FHC em alguns grandes temas não é nada injustificada. Ao contrário: seu partido, para não falar sobre todos os outros, inclusive e especialmente o atual governante (será o mesmo daqui uns meses?), falhou em elaborar respostas aos nossos dilemas. Tanto o papel da oposição quanto o da situação estão em aberto neste ponto da Nova República, e faltam as atualizações teóricas e políticas necessárias para superarmos os desafios de nossa miséria. Pelo menos Fernando Henrique Cardoso continua tentando. Deveríamos tentar um pouco mais também.