A causa do militante veio a atribuir sentido e nobreza ao trabalho dos acadêmicos.
Quem conhece a história da filosofia sabe que os gregos antigos tinham um papo meio esquisito de que “pensar” e “ser” eram coisas muito próximas e até indissociáveis. Hoje, o pensamento se associa a conceitos um pouco menos interessantes. Para quem utiliza a autoridade intelectual militando na universidade, por exemplo, “pensar” é associado naturalmente a “tomar posição sobre X ou Y”. E quando a posição que alguém assume não é a mesma do intelectual militante, isso só pode significar que a pessoa “não pensa direito”.
Se ainda fôssemos gregos, é provável que as coisas não rolassem bem assim. A associação entre a militância política e a atividade intelectual foi uma solução para a falta de lugar dos intelectuais em um mundo que passava a desprezar ou tratar como excêntrica a ideia de valor intrínseco do conhecimento.
Dá para levantar muitos tópicos por aí. Por exemplo, há quem veja a transformação das escolas de ensino médio em cursos preparatórios para o vestibular como uma consequência nefasta da concorrência entre as escolas privadas, mas uma razão menos óbvia poderia ser buscada alhures. A própria ideia de educação universal, que a revolução francesa nos legou, se diferenciava essencialmente do princípio grego do “conhecimento por ele mesmo”. Ali no século XVIII, quando o homem conquistava direitos universais, já valia a ideia de que a finalidade do conhecimento é determinada pelo pertencimento a um modelo específico de sociedade (no caso, uma sociedade de iguais, uma democracia).
Mesmo o mais esquerdista dos acadêmicos militantes (e sobretudo estes) não está alheio à “instrumentalização do conhecimento”, muito embora essa ideia seja usada apenas para criticar os alunos que buscam um exclusivo aprendizado técnico. Na verdade, poucos instrumentalizam tão bem o conhecimento quanto estes tipos de intelectuais, utilizando-o ao mesmo tempo como ganha-pão e ferramenta de retórica política (para o horror de Platão, o maior dos anti-sofistas). Ao contrário dos sofistas, porém, os acadêmicos militantes de hoje não apresentam o seu produto como um bem do espírito a favorecer individualmente os seus prestigiosos clientes. É preciso que o conhecimento seja um bem universal, uma contribuição ao mundo. É preciso que o conhecimento transforme a sociedade.
Com o abandono do valor intrínseco do conhecimento, a causa do militante veio a atribuir sentido e nobreza ao trabalho dos acadêmicos. Não é difícil constatar isso no universo da pesquisa em artes: falar das obras é uma coisa quase obsoleta. Importante mesmo é partir delas para abordar algo como o discurso de gênero, a desconstrução de algum preconceito, a representação do subalterno/oprimido/dominado etc. Que alguém fale de “estética e política” sem forçar a barra da “política” é algo raro. Que alguém aborde apenas e especificamente objetos como filmes, livros ou outras formas de expressão artística tornou-se uma coisa aborrecida, antiquada, por vezes até angustiante.
“É preciso que o conhecimento sirva para alguma coisa”, diz o dono do cursinho pré-vestibular, confirmado todos os dias pelas teses de doutorado sobre “a obra tal como instrumento de crítica ao machismo/racismo/eurocentrismo/todos os outros ismos imagináveis” (os fins podem ser diferentes, mas a instrumentalização do conhecimento é a mesma, nos dois casos).
Está certo. Afinal, quem deveria ainda se importar “apenas e especificamente” com uma coisa tão inútil como a arte em si mesmo?
Rodrigo Cássio
Professor e pesquisador. Autor de Filmes do Brasil Secreto (Ed. UFG).