"Brochadas", romance de Jacques Fux, é uma obra que vai do sexual ao tema dos relacionamentos humanos mais amplos.
Jacques é um escritor que ganhou um prêmio literário importante em seu país com seu primeiro livro e se encontra, enquanto na elaboração de seu segundo trabalho, no exterior, realizando pós-doutorado. A premissa inicial seria básica, não fosse por um fato: Jacques quer escrever sobre quais os motivos que o levaram a vários fracassos sexuais, intitulando o volume de Brochadas, com o subtítulo de Confissões sexuais de um jovem escritor.
Primeiro, empreende uma autoanálise dos fatos, depois entra em contato com as parceiras/testemunhas de suas brochadas a fim de que elas, também, digam se brocharam com ele (sim, porque mulheres também perdem a vontade sexual no parceiro por vários motivos – alguns deles, inclusive, elencados, junto a causas determinantes ao homem, logo no início do livro) ou possam indicar quais seriam as razões, vistas por elas, dos empenhos libidinosos e seus resultados ineficazes do nosso herói.
Não bastasse isso, Jacques faz uma pesquisa histórico-literária, em que personagens como Platão, Santo Agostinho, Ernest Hemingway, James Joyce e demais membros (sem duplo sentido) relevantes da humanidade tiveram (ou foram acusados/suspeitos de ter) momentos dramáticos subjugados por seus companheiros inseparáveis. Existem também fatos curiosos, tocantes e penosos, enfocando boas lembranças dos livros de Moacyr Scliar quando miram no aspecto judaico e seu universo – talvez a parte mais dramática do livro, quando procura pintar retratos das famílias de suas amantes judias –, e em outros momentos, quase sua totalidade, discorre numa narrativa que, como salientaram Marcia Tiburi e Alberto Mussa, adota diversos pontos de vista, nunca desprovidos de humor, fazendo rir e pensar.
Fora isso, mesmo que o título e o enredo remetam a memórias de encontros sexuais em derrocada e a análise destes verificados desde que a humanidade é humanidade, o que prepondera é de quanto o personagem se confunde com o narrador, criando ao que lê o seguinte dilema: quanto de verdade existe nas linhas escritas por Jacques, incorrendo numa recente (mas não nova) moda literária: a autoficção.
Não que o autor afirme, categoricamente, ser brocha, ou ter sido brocha. Isso a gente acredita (por ser legal com o autor, né, Jacques Fux) que seja apenas destino do Jacques-personagem e seu Jacozinho (nome pelo qual invoca seu pênis, o que faz recordar do famigerado Bráulio das propagandas noventistas de incentivo ao uso da camisinha), até mesmo para que o enredo se estenda com as conclusões do personagem acerca dos porquês de suas derrotas na cama (que apontam, quase sempre, a minúcias incompatíveis – geralmente os odores – com quem se relacionou), seus e-mails às ex-amantes e as respostas recebidas.
No entanto, a obra não vem tratar somente deste brochar no sentido sexual. O termo, na língua portuguesa, tem inúmeros significados, mas, quase sempre, descamba para o sentido carnal e quer dizer que a pessoa brochou porque desanimou, ou tentou e não conseguiu. Em suma, é sinônimo de perda, de fracasso. Assim, em que pese parecer o tema e sua narração cômicos, há, nas entrelinhas, uma reflexão séria e incômoda, demonstrando o quanto às vezes é difícil o relacionamento humano (vide as edições do Big Brother e afins, por exemplo), do qual o sexo é apenas um dentre tantos outros tipos. Mais ainda: demonstra que mesmo nos achando senhores de algo, não conseguimos ter controle nem sobre o nosso próprio corpo (cabelos saindo/embranquecendo, unhas e barrigas crescendo que o digam).
Uma obra não-biográfica (?) revestida de livro-reportagem (?)
O termo autoficção é um neologismo, criado em 1977, por Serge Doubrovsky, crítico literário e romancista, para designar seu romance, Filho (Fils, em francês). O gênero já existia antes, mas foi Doubrovsky que o batizou, sendo definido por uma espécie de “pacto paradoxal”, uma contraditória combinação de dois tipos de narrações opostas: é uma narrativa baseada, como autobiografia, no princípio com três identidades (o autor é igualmente o narrador e o personagem principal), que exige, contudo, a ficção nos seus esvaziamentos e em pretensas alegações; também é chamada de “romance pessoal” em programas oficiais de literatura.
Em resumo, é um cruzamento entre uma verdadeira história de vida do autor, explorando uma experiência ficcional dele. Dessa forma, nomes das personagens ou localidades podem ser modificadas, factualidade colocadas em segundo plano em favor de uma memória econômica ou por razões de escolhas narrativas do escritor. Carimbada como uma “censura interna”, a autoficção deixa um lugar de destaque para a expressão do inconsciente. A ficção torna-se a ferramenta exibida em busca da identidade (particularmente através do uso da psicanálise).
Destarte, usando do método acima, ficamos entre reticentes quando Fux trata da vida pessoal de Jonathan Swift, Herman Melville e Jorge Luis Borges, e entre informados ao ler sobre quanto Stendhal, Balzac, Flaubert, Verlaine e Hilda Hist se debruçaram sobre o tema, colhendo, ainda nas epígrafes, curiosas menções feitas à brochada por Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Bernardo Guimarães.
Jacques, em entrevista que concedeu ao site Literatura e Outros Demônios, com texto de Pedro Dias, confessou gostar dessa brincadeira, de misturar o que é real ao que é inventado: “A figura do autor está muito em cena. Isso é algo bem contemporâneo. E acho superlegal fazer autoficção, misturar e embaralhar os acontecimentos. A realidade, o que a gente chama de real, é quase um sonho, assim como a imaginação, porque talvez a gente esteja sempre calcado em algum momento vivido. Acho que a ficção funciona nesse meio termo, entre esse real que a gente não consegue atingir e essa imaginação completa que também não podemos alcançar. Por mais que as pessoas tentem classificar a literatura – conto, crônica, biografia, autobiografia –, vejo todos como textos literários ficcionais e a beleza é não ter que se preocupar em reconstruir a realidade na ficção. A preocupação tem de ser com a forma, as redes literárias que vão se abrindo. No momento em que você escreve e tenta retratar ao máximo essa realidade, mas não consegue porque existem as lacunas da memória, entra a imaginação. E juntando isso você faz literatura”.
De outro lado, na mesma oportunidade, sendo ratificado de que a maioria dos escritores prefere colocar suas experiências reais em personagens fictícios, é questionado a Fux dos motivos que o fizeram se abrir assim para o público, mesmo que este não tenha certeza do que são verdades e do que são invenções, ao que ele responde ser apenas um recurso literário. “O Borges dava o nome de Borges aos personagens. No Marcel Proust aparece o Marcel. O Ricardo Lísias, que é um autor contemporâneo, escreve a maioria de seus livros com o personagem Ricardo Lísias. Não é outra coisa senão um recurso literário, que no meu caso é explícito. Quero brincar com o leitor, quero que alguns caiam, outros não. Enfim, é uma grande brincadeira”, elucida.
Sendo brincadeira ou não, sendo biografia ou não, sendo uma investigação ou não acerca dos motivos das suas falhas sexuais e de outros – que expõem o ser humano como imperfeito que é (sendo a questão sexual usada como metáfora e, poderia ser dito, a menor comprovação dessa constatação) –, entre uma e outra brochada fica a evidência de ter passado por um texto rijo, o qual não teve necessidade alguma de subterfúgios (fármacos, inclusive) para que agradasse, o que, aliás, em nenhum momento passou pela cabeça do Jacques-brocha-personagem. Ou passou e, como somos informados pelo autor antes do sumário, “tudo aqui é verdade, exceto o que não invento”?