Não basta ser tradutor, mas sim criador, alguém que, com recurso e domínio técnico, imaginação e criatividade, renova a obra.
1.
Um dia – em uma livraria parisiense, cujo livreiro não apenas aferia lucro a partir de ideias e livros alheios, mas costumava travar acalorados diálogos intelectuais – Rainer Maria Rilke e Carl Jacob Burckhardt (homônimo do autor do grandioso A civilização do Renascimento na Itália) discutiam pacientemente sobre tradução, mais especificamente da impossibilidade de verter o autor alemão Peter Hebel para o francês.
Subitamente, um senhor já idoso, assíduo frequentador da livraria, aproximou-se. Externando relativo conhecimento perante os presentes, e, diga-se de passagem, diante o já consagrado Rilke, o velho leitor – não se acabrunhando – disparou que, não apenas a tradução do alemão para o francês era um fracasso constante, como era possível somente por meio dos esforços criadores de outro escritor igualmente inventivo. Para o senhor em questão, apenas La Fontaine; por ser não exclusivamente um conhecedor da língua, mas um criador: conseguira traduzir (com propriedade) o alemão de Hebel para o francês. Ao ouvir tal declaração, que comprometia a transmissibilidade e consequente tradução literária, o livreiro retorquiu: “No paraíso, eles sem dúvida conversam um com o outro numa língua que esquecemos”.
2.
Se universalizada a um contexto que não seja circunscrito apenas à tradução, mas às demais áreas do conhecimento – de um extremo que contemple a literatura, a ciência e a filosofia (com seus respectivos catedráticos, intelectuais e professores) – a observação do velho leitor, perante Rilke e Burckhardt, aponta para uma certeza por vezes não admitida: A) O processo do conhecimento requer originalmente a busca de uma verdade pessoal (crescente a partir de algumas inquietudes que incidem sobre aquele que pretende conhecer); B) encontrável em uma referência basilar (por exemplo, o autor de um livro e sua biografia) que certamente já as enfrentou em sua própria vida; C) logo, compreender tal autor como referência exige a condição mínima de verter, para as situações particularmente pessoais, aquilo que é lido ou assimilado, algo que poderíamos supor como um processo de verificação ou viabilidade do que é apreendido; D) e por fim, de posse dessa verificação: assumir – desde o menor gesto até um conjunto de ações maiores e mais complexas – a responsabilidade daquilo que é transmitido por meio de um renovado processo de criação que, por se comprometer fidedignamente àquela referência, ajusta, renova ou aprimora suas ideias em circunstâncias inesperadamente distintas quando da realização da obra original.
Da condição primeira ao seu desdobramento último, o que se pretende afirmar com estes tópicos é que o ato de conhecer (ainda que sustentadamente defendido como uma faculdade comum a todos) só se concretiza quando o pretendente parte de seus anseios particulares – em busca de uma mediação ou referência que, a partir de seu exemplo, fomenta a criação (aqui compreendida como mudança substancial de estados, ou seja, a transformação e consequente efetivação de uma habilidade).
Portanto, quando o velho leitor afirmava que La Fontaine traduzira Hebel apropriadamente em função de sua condição de criador, sua defesa simplificadamente deixava escapar: não basta ser tradutor (algo que, com incansável exercício da língua a ser traduzida, se alcança), mas sim criador, ou seja, alguém que, com recurso e domínio técnico, imaginação e criatividade, renova a obra.
3.
Em um âmbito relativamente próximo, com efeito, na esfera da crítica literária, o filósofo Russell Kirk escreveu que os aclamados Ben Johnson, Samuel Taylor Coleridge, Dryden e Matthew Arnold eram: “críticos cuja análise é subproduto da atividade criativa”.
Ora, se pensarmos em um tradutor ou mesmo em um crítico literário, como dependentes de obras que, em primeiro plano, não são suas, veremos que a recepção e fomento às ideias partem desses intelectuais, cujo compromisso ético é determinante. Se em desacordo com os tópicos anteriormente elencados, da verdade pessoal à renovada criação, os efeitos irresponsáveis com a obra lida podem comprometer uma cadeia de experiências depositadas, constatável quando se adquire, com entusiasmo, um autor desconhecido recém traduzido. Portanto, se em uma ocasião como essa fizermos uma simples pergunta como “Será que esse tradutor assumiu os riscos dessa obra?”, instantaneamente surge a descoberta: conhecimento é responsabilizar-se por uma verdade.
Quando irresponsável, uma tradução pode dilapidar ou destruir uma obra e, por extensão, o pensamento de um autor, em uma centena de maus entendidos, custosamente reparáveis. Para verificá-la, apenas o recurso a fontes diversas e domínio de outra língua, atestando assim seus êxitos, desvios ou fracassos. Desse modo, e como consequência, a própria atividade intelectual exige de seus interlocutores a criação – processo que tende a equilibrar as constantes demonstrações de mediocridade triunfal com o devido ajuste àquilo que pretende o autor. Daí a sintomática constatação do velho leitor: apenas La Fontaine traduziu Hebel devidamente, ou seja, em meio às inúmeras traduções inapropriadas, eis que um escritor reparou a obra de um autor há muito comprometido.
Por conseguinte, no horizonte da atividade literária e seu acervo bibliográfico, duas consequências resultam daqueles tópicos anteriores: A) Quando efetivamente comprometido com uma verdade pessoal, e após ter descoberto uma referência autoral, ao leitor surge a necessidade de rastrear sua obra de modo que, quando estrangeira, traduções são prioritárias; B) entretanto, mapeá-las e cotejá-las com outras edições se torna imprescindível, processo que, quando em prejuízo ao autor, apressa a reparação e, por consequência, a necessidade de uma apropriação digna do autor em questão. Fazê-lo é criar.
Daquela pergunta sobre os riscos da tradução até a resposta (constatável a partir do devido mapeamento), o horizonte do conhecimento se manifesta minimamente, por que entre a obra traduzida e seu leitor, sendo observável – de outro modo – em contextos maiores como em uma sala de aula, uma conferência, um embate intelectual. Em cada um dos contextos, da sala de aula ao embate, o processo não é diferente da obra traduzida e possíveis adulterações, o que exige, portanto, o conhecimento sobre aquilo que é apresentado; e a observância de in-coerências ou des-acertos. Quando observadas, surge a apropriação, renovação e criação do autor, ajustáveis a partir de seus propósitos virtuais.
De um caso a outro o que permanece é a defesa da responsabilidade perante ideias, e consequente assunção de sua verdade por meio da criação engendrável em um constante processo de transformação, seja estética, filosófica, científica ou minimamente pessoal. Quando não assumidas, e muito menos criadas por leitores ou interlocutores, o que surge é engodo intelectual, cuja demonstração mais frequente de inventividade é a confusão anárquica, com construções pobres, porém democráticas, em que todo anseio de aprimoramento é obstruído por uma centena de vozes sobrepostas. Perante tanta confusão, ainda é possível imaginar o livreiro atualizando sua justificativa nos dias de hoje: “Nessa Torre de Babel, eles sem dúvida conversam um com o outro numa língua que esquecemos”.