A face mais perversa da educação formal é a simplificação do conhecimento.
Todos os anos a história se repete nos dias do ENEM. Alguns reclamam do caráter ideológico das questões e da redação. Outros vêem as perguntas “politizadas” e os temas “progressistas” como um “avanço na educação”. Paralelamente, muito se questiona sobre o modelo de ensino, ainda decorativo, exigindo que os alunos passem por provas cansativas e tenham domínio de temas com pouca aplicação prática. Ainda, discutem-se questões como “meritocracia” e sobre o caráter “elitista” e “excludente” do processo de ingresso no ensino superior.
No entanto, pouco ou nada se fala sobre o modelo educacional brasileiro (e da maior parte do mundo) e sobre a própria concepção de educação. Quase não se questiona sobre o que é educar, ensinar ou aprender, e é praticamente impossível para a maioria das pessoas dissociarem educação de instrução formal e, consequentemente, de uma ação centralizadora do Estado em relação ao controle deste processo.
Da segunda metade do século XX aos dias de hoje, a educação se tornou sinônimo de “acesso” e “direito”. A grande preocupação dos Estados nacionais foi em “garantir” o acesso à educação básica para todos e criar mecanismos para facilitar a chegada de camadas cada vez mais amplas da sociedade às universidades. Simultaneamente, a ação referente aos conteúdos educacionais passou a ser direcionada à formação do “senso crítico” e da “cidadania”. No entanto, o que a sociedade de maneira geral assistiu passivamente, sem se atentar para o problema, foi a perversidade de todo esse processo ter sido guiado quase de forma totalitária pelo Estado.
O fato de o Estado assumir ao mesmo tempo a responsabilidade de propiciar o acesso à educação e de direcionar o “senso crítico” dos indivíduos transformou o processo educacional num autêntico meio de controle de consciências. Dessa forma, se um indivíduo deseja continuar recebendo instrução formal, seja por meio de uma instituição pública de ensino superior ou por meio de uma instituição privada, mas altamente regulamentada pelo Estado, deve passar por avaliações homogeneizantes, por verdadeiros crivos de pensamento, em que o sujeito deve demonstrar que está devidamente “adestrado”.
A face mais perversa, e avessa a uma formação intelectual consistente, da educação formal é a simplificação do conhecimento. Como o indivíduo precisa passar por avaliações altamente engessadas e formais, o espaço para uma real consciência crítica é quase nulo e aquilo que se entende por “senso crítico” passa a ser ensinado, literalmente, através de manuais, numa espécie de triunfo tardio do racionalismo, do cientificismo e do positivismo, com a nova roupagem das questões “sociais” nascidas a partir de meados do século XX.
Diante disso, não se trata do ENEM ou de qualquer outro processo avaliativo para ingresso no ensino superior ser ideologicamente enviesado para um lado ou não. Seria igualmente desastroso se tivéssemos qualquer outro viés político em exames desse tipo. O que se deve questionar é a concepção educacional vigente em nossa sociedade, ao mesmo tempo em que o clamor não deve ser pela “imparcialidade” ou pela “igualdade” de visões políticas na educação e nas avaliações, mas por uma educação descentralizada, em que vários modelos e concepções sobre educação possam concorrer e conviver, a partir da valorização da autonomia das instituições de ensino e das preferências de pais e alunos pelo modelo que mais se adequar às suas pretensões e, ainda, a possibilidade da educação domiciliar.
Se o Estado se arroga do dever de garantir o “acesso” e o “direito” à educação, deve reconhecer seus limites em relação à capacidade de determinar qual conteúdo deve ser aprendido por todos e, principalmente, deve entender que “consciência social”, “senso crítico” e “cidadania” têm como pilar fundamental a diversidade e a pluralidade de ideias, e não devem emanar da canetada de burocratas em seus gabinetes.
-
Tutameia
-
Rafael
-
Tutameia
-
-
-
André Martins
-
Tutameia