Como a incursão em Brasília do Doutor Renato Janine Ribeiro ajuda a esclarecer a diferença entra a verdadeira filosofia e a filosofia departamental.
1.
A passagem do “filósofo” profissional, Doutor Renato Janine Ribeiro, à frente do Ministério da Educação se fez de modo breve, e, do mesmo modo, se fez como um indicativo da crise não apenas educacional, mas igualmente acadêmico-filosófica deste país. Com efeito, em meio aos seus corredores, inúmeros docentes são esperançosamente formados. A mesma estrutura departamental – com sua baixa produção intelectual significativa, burocracia e briga de egos – é a antessala ou o bastidor cotidiana de um decadente Ministério da Educação, daí o êxito do igualmente burocrata, e não menos panfletário, Doutor Renato Janine Ribeiro, que na condição de ministro presenciara um fato histórico sem titubear. Em meados de julho deste ano, nos Estados Unidos, em meio a um de seus desastrosos discursos, a Presidente Dilma Rousseff criou uma nova conjugação verbal, portanto, um novo verbo: “eu agaranto” (sic). Por conseguinte, não surpreende se desde aquele dia – autorizado por meio da cumplicidade do ministro da Educação, que nem mesmo uma nota de retratação publicou – um filósofo pós-heideggeriano escrevesse em sua tese de doutorado: “O Ministério da Filosofia a’diverte. (sic)” Neologismos à parte, tudo é permitido desde quando se aceita – sem questionamentos – os protocolares “departamentos de filosofia”, e o não menos escandaloso: “o ministro da Educação é filósofo”.
Na atual conjuntura brasileira, nada é mais significativo que a demissão do curricularmente pomposo Renato Janine Ribeiro, cujo suprassumo de sua “filosofia” é a inserção midiática em alguns programas de televisão, além da notabilizada e extensa produção acadêmica, haja vista seu Lattes: “Tem 89 capítulos de livros e 18 livros editados. Participou de 18 eventos no Brasil. Publicou 77 artigos em periódicos especializados, 11 trabalhos em anais de eventos e 18 prefácios e/ou posfácios. Orientou 14 dissertações de mestrado e 17 teses de doutorado, além de 1 trabalho de iniciação científica em Filosofia.” Diferentemente daqueles que se contrapõem – por inveja ou ressentimento – ao sucesso meritório de alguns, por mensurá-lo como injusto ou indevido, reconheço que no Brasil ser bem-sucedido é um perigo, quando não uma ameaça ao establishment. Desse modo, no âmbito acadêmico, o sucesso do Doutor Renato Janine Ribeiro é inquestionável, a tomar, sobretudo, suas publicações; afora as intervenções televisas que há muito o destacam como um estudioso da Ética e da Política. Entretanto, filosofia é mais do que a atualização volumosa de um currículo, sobretudo, se suspeitada sua condição antes oral que propriamente impressa, cujos êxitos e intuições nem sempre são atestáveis em um escrito. Daí o contrassenso de exigir – sem ruborizar – o currículo de um pretenso filósofo, objetivando assim atestar suas capacidades intelectuais; com efeito, nem Platão nem Aristóteles nunca o lograram, muito menos alguém da envergadura de Gustave Thibon ou Antônio Gramsci.
Seria a exigência curricular, um mister atestatório da atividade filosófica, ou apenas uma satisfação pessoal, portanto, um acidente biográfico, de onde os encantos – quando superestimados – é a celebração imperiosa de uma nova casta aristocrática e ministerial, cuja bácula e espada são seus artigos e títulos? Onde reside a excelência intelectiva e consequente espírito filosófico: na capacidade noética de quem parte de princípios e juízos até vê-los refletidos especulativamente no ato interior da inteligência que as atualiza, e que, por fazê-lo, capta a realidade, ou na soma acidental de artigos publicados em uma revista qualquer, cujo último grau de seu reconhecimento é a celebridade subterrânea de uma vida acadêmica? Se desde sempre, ou seja, antes de sua exigência curricular, a atividade filosófica tem sido – a despeito de seus cacoetes acadêmicos – a expressão pessoal de quem busca inteligir, ou seja, atualizar ao menos para si mesmo, a multiplicidade de coisas em busca de sua unidade, cuja fonte é una e perene porque é a própria realidade, logo se chega à conclusão de que os conteúdos da filosofia são secundários ou acidentais quando desvinculados de sua forma, importando – quando integral – deduzi-los dos princípios que a movem, daí seu caráter intelectual, antes pessoal e intuitivo que propriamente curricular ou departamental.
Por outro lado, quando exclusivamente tributária a uma hermenêutica que se precipita aos seus conteúdos, em vez de sua forma como exigência do pleno rigor filosófico, o risco é se enredar naquela dificultada teia denunciada por Ferrater Mora: divisão cronológico-linear, divisão geográfica e divisão conceitual, teia esta que se torna mais sombria e confusa quando não se articula àquela questão de gradual tomada de consciência acerca daquilo que se investiga, há muito percebido talentosamente por Bernard Lonergan: “O que sucede quando conhecemos e o que conhecemos quando sucedem os atos de intelecção?”
Em outras palavras, cabe a pergunta: será que a tão propalada busca pelo conhecimento e pela filosofia não exige um exaustivo processo de autocompreensão, ao modo de uma exegese responsável, que por sua vez nada mais é que uma tentativa de reconquistar ou recordar o que se encobrira circunstancialmente à própria consciência, ao modo de uma mentira inconfessada? Daí a primeira das questões, voltadas àquele que se pretenda um entusiasta do conhecimento filosófico: “Se todas as minhas mentiras fossem suprimidas, qual a única verdade que restaria?”
Do mesmo modo, não é essa exigência pessoal e autoconsciente, que agrava a apreensão da realidade, um episódio decisivo na vida de quem investe na filosofia, com efeito, conhecê-la implica reconstituir especulativamente a unidade das notas e particularidades capturadas ao redor, à cata de sua verdade última? Portanto, se desde a mínima esfera da consciência de quem a especula, essa tal filosofia é supremamente complexa, o que dirá as reuniões departamentais sobre carga horária; a exigência de artigos publicados e egos à flor da pele? Do mesmo modo, como conciliar aquela mínima filosofia pessoal aos dilemas ministeriais de um problema maior, episódico e dramático como no caso Janine Ribeiro, à Educação brasileira, cada vez mais ofertada a interesses partidários e ideológicos, jamais a vultosos educadores? Daí a certeza de George Fitzhugh, a partir da qual titubeio ante as aparições midiáticas da filosofia ministerial: “A filosofia destruirá qualquer governo baseado nela”.
Não surpreende, portanto, que Heráclito tenha sido o primeiro a identificar nessa exegese, ou nessa meditação auto-apropriativa, a atividade filosófica como uma exploração contínua à consciência, custosa em razão de sua mutabilidade. Entretanto, desde a modernidade tal apelo é apenas um epifenômeno da apreensão racional, o que configura, desde então, um delírio megalômano que busca compreender a realidade a partir de constructos e conceitos hipotéticos, jamais o contrário. Ou seja, desde a modernidade, a filosofia se tornou uma metalinguagem, ou, na melhor das hipóteses, uma modalização de um gênero literário blasé, facilmente insinuável como o delírio de um tolo. Como se não bastasse o menor e mais crucial de seus erros – o cogito cartesiano “Penso, logo existo”, reparável desde muito antes por São João Damasceno em De fide orthodoxa, segundo o qual o certo seria: “Penso, logo É” – o que vem a reboque é toda sorte de pneumatologia ou doença do espírito, em um crescendo de conteúdos e experiências danosas à autocompreensão, sobretudo se considerarmos – segundo alguns – que os problemas filosóficos sejam exclusivos problemas de linguagem, mecanismos de poder e resíduos metafísicos.
Aliás, é a partir desta megalomania intelectual – que supõe conhecer, a partir de limites estritamente cognitivos, capturáveis em nome de sistemas filosóficos fechados – que aberrantes criaturas ganham fôlego no espaço público, esperando ver a história da filosofia atingir culminação em suas próprias obras e conceitos, tornando-se (dentre outras coisas) filósofos profissionais, que de posse de currículos e trabalhos suspeitos dão à especialidade a medida de sua excelência. Com efeito, projetam-se a troco da exaustiva inquirição acerca do cérebro de uma sanguessuga, como ridiculariza Nietzsche no tocante aos especialistas.
Ao modo do dilema do igualmente moderno Jean-Baptiste Biot, a postura pública daqueles profissionais da filosofia (funcionários da humanidade, segundo Husserl) se denuncia lacônica e imperiosa. A propósito, certa vez disseram a Biot, “Vou fazer-lhe uma pergunta interessante”, e em réplica o matemático objetou: “É inútil: se sua pergunta é interessante, eu não tenho a resposta”. Se eventualmente atualizada, e sobretudo encaminhada para um profissional da filosofia como Janine Ribeiro, a encenação seria a mesma: “Filósofo, vou fazer-lhe uma pergunta interessante sobre educação e sobre a realidade brasileira atual, creio que lhe diga respeito”, logo seguido da objeção “É inútil: se sua pergunta é interessante, não me diz respeito. Por oportuno, filosofemos sobre a importância de Marx para o fim da exploração do homem pelo homem”.
Em linhas gerais, como é mais fácil promover o pseudo espírito filosófico – a partir da aparente clausura e distância aristocráticas ao modo daqueles que a improvisam pomposamente – o risco é compartimentá-la em fragmentos a partir das especialidades de seus próceres e Doutores, resguardando-os sob a face oficiosa e protocolar de um Departamento que determina corporativamente o nível de sua inserção, bem como de seu campo de atuação. Neste último, o Doutor Renato Janine Ribeiro se arvora soberano, daí sua desastrosa passagem como ministro da Educação. De fato, tal pasta exige antes planejamento e gestão pública que propriamente o discurso departamental de um profissional da filosofia.
Aliás, em outro âmbito maior até que um Ministério da Educação e já na constelação dos saberes: quem pode autorizar oficialmente um Departamento de Filosofia, se nem mesmo objeto essa dispõe, diferentemente da ciência, cuja especificidade de seu objeto é um pressuposto para sua própria metodologia, bem como eixo para sua investigação? Se, por filosofia, Aristóteles considerou a ciência que se procura por não ter objeto algum (zetoumene episteme), que autoridade – senão imaginária – dispõe um Ministro formado no vazio acadêmico de sua latência, cuja medida de sua promoção é uma especialidade negativa? (Afinal, como afirmara Bergson: “A verdadeira filosofia começa por dizer – Não!”).
Sendo a filosofia uma correction du savoir-penser, ou seja, uma reabilitação exaustiva e pessoal em torno do Ser, crescente ao redor da contínua depuração do que é dado ou apreendido rumo ao desconhecido, do fragmentário para o total, como imaginá-la como uma concessão oficial, credibilizada pelo aval de seus departamentos, a partir da chancela de um ministro da Educação, cujos conteúdos sempre secundários são tomados como a própria filosofia? Se assim for, imaginemos uma corte ministerial, suficientemente capaz de ponderar sobre os conteúdos e sobre as discussões a serem encaminhadas aos demais centros filosóficos mundo afora. Se não fosse no mínimo cômico, faria sentido? Creio que para figuras como o Doutor Renato Janine Ribeiro, a própria noção filosófico-departamental que cresce ao redor de seus currículos e artigos sem jamais ser questionada, ou sequer problematizada, já insinua desde antes o caráter oficialesco de uma filosofia protocolar, a partir da qual um ministério é apenas um sucedâneo institucional.
2.
Como costumo dizer, e o mesmo vale para o indigno Brasil: todo empreendimento humano bem-sucedido é espontâneo, logo o sucesso de um homem público é a medida objetiva de sua espontaneidade. Desse modo, se rastreada a partir de seu êxito, qual a medida do sucesso do Doutor Janine senão a vida acadêmico-filosófica, espaço que se consagra proporcionalmente pela propagação de ideias, bem como pela recorrente confusão moral e espiritual, igualmente denunciadas por George Orwell? – “O grande inimigo da linguagem clara é a insinceridade”.
Em tais termos orwellianos, constantes em uma Universidade brasileira, basta a macaqueação conceitual para se criar um idolo theatri, ou seja, um popstar, frequentes a partir da disseminação e domínio de seus jargões técnicos, igualmente vagos, que ao modo de uma segunda realidade concebe o mundo real desde cima à maneira de uma hipóstase ou emanação mística. Por ora, a fórmula dessa macaqueação acadêmica (verborrágica e inclusiva) é: diga tudo, mas não diga nada – ao modo do universo de Eddington que se expande por difusão até alcançar o ponto de nulidade. Vale lembrar que é esta mentalidade que disseminará (em cadeia), como uma doença do espírito, a formação de futuros educadores, que por sua vez ajustarão o princípio supremo da Educação a interesses de gênero, ideologias e perversões pessoais, tomadas por seus méritos emulados nos corredores da própria Universidade de viés filosófico-conceitual.
Por certo, em uma espiral de efeitos danosos ao espírito humano, eis a causa do desastroso lugar que a Educação brasileira ocupa no ranking internacional, cuja penúltima posição denuncia a medida de um fracasso, ao modo de um vexame, bem como de um diagnóstico. Diagnosticada a tempo, tal fracasso é a consequência da importação de ideais sem nenhuma vinculação com a realidade ao redor, agravada com a celebração midiática de seus porta-vozes. Quando vitoriosa – a partir da concessão triunfal de um cargo ministerial a um igualmente burocrata, ao modo do Doutor Renato Janine Ribeiro -, eis a fórmula da filosofia departamental, frequente na aspiração profissional à ocupação corporativista de espaço, jamais aos reclames das ideais. Entretanto, cabe a pergunta: desde quando a filosofia é um ministério, ou melhor, desde quando é produto de um departamento, capaz de disciplinar a abertura intuitiva e pessoal sobre a consciência cognoscente?
Sendo acolhedora a algumas ideias, já consagradas nos grandes centros, mas inconfessadamente indiferente à confrontação dialética, que a torna insincera e tacanha, a discussão acadêmico-filosófica é o antípoda da espontaneidade bem-sucedida, cuja principal característica é a incorporação desde a vida pessoal de quem a propaga, extensiva igualmente como uma possibilidade ao contraditório, ao gradual abandono e à revisão bibliográfica a partir de outras fontes. Quando não é uma questão vital, crucial àquele que a defende, a discussão acadêmico-filosófica é a emulação cômoda de uma metalinguagem, apenas a divertida passagem conceitual de abstrações por sobre abstrações, ao modo do que pontuara Pascal: “Divertir-se é divergir”. Tal divertissement é o esvaziamento do propósito filosófico, espontâneo quando irradiante desde o centro da consciência, e igualmente ajustável a partir de especulações dialéticas herdadas da tradição. Quando não, é apenas a titulação acadêmica de um entusiasta, saudoso por emular a herança corporativa e departamental jamais questionada, ao modo de um ministro entre seus subalternos.
3.
A especificidade da atividade filosófica surge das intuições, que nada mais são que o princípio de todos os princípios, fonte originária do conhecimento. Ademais, a filosofia deve retroceder à intuição das próprias coisas, fazendo-a trazer o que é pensado à automanifestação, ou seja, à certeza pessoal e por vezes silenciosa daquilo que se supõe saber. Longe disso, é uma modalização discursiva, ao modo de um entretenimento intelectual, advindo daí seu caráter dispersivo, pomposo e blasé. Desse modo, quem lucra mais com tal entretenimento senão seus departamentos, suas editoras e revistas especializadas, bem como seus patronos ministeriais?
Em carta a Turgueniev, em novembro de 1872, explicando-lhe a razão de seu devastador Bouvard e Pecúchet, escreveu Gustave Flaubert: “Estou escrevendo um livro em que descarrego toda a minha bíblis. Pretendo explicar a totalidade da vida intelectual na França”. Ao modo de um visionário, que consegue antever a ruína catastrófica de um estado de coisas, Flaubert conseguiria – desde aquele livro – ridicularizar não apenas a França novecentista, mas a França ulterior, cuja emulação conceitual de seus Deleuzes, Derridas e Foucaults é apenas uma variante menos irônica do desfecho daquele farsesco e enciclopédico romance. Ao modo destes últimos ministros da filosofia profissional, mas desde o século XIX, Flaubert condensa na maior descoberta de Bouvard e Pecúchet toda a filosofia pretensamente moderna, afinal seu farisaísmo bibliográfico-conceitual parece confundir a palavra impressa com a realidade remetida. “Copier comme autrefois!“, afirmam os personagens-filósofos de Flaubert, o que em outras palavras, menos pomposas, significaria: “Voltemos a copiar!” Toda filosofia ministerial é cópia da cópia de nada, entretanto, por não suspeitá-la, um singelo leitor leva o copista ao estrelato de uma carreira promissora.
Se a máxima goethiana fosse conhecida e compreendida pelo Doutor Renato Janine Ribeiro, segundo a qual “certas pessoas não renunciam ao erro porque devem a ele seu sucesso”, sua renúncia já teria sido escrita a próprio punho, quando da desastrosa declaração de sua chefa, a Presidente Dilma Rousseff. Em julho deste ano, nos Estados Unidos, quando questionada sobre as então recentes delações do empreiteiro Ricardo Pessoa, a Presidente – mais uma vez ao escorregar no próprio vernáculo – consumou sonoramente o ápice de sua revoltosa fala, com um ‘Eu agaranto‘ (sic).
No vídeo, a figura curiosa do Doutor Renato Janine Ribeiro se faz denunciar, o que, aliás, compromete-o indesculpavelmente com a oradora, desde que, naquela ocasião, nenhuma nota ou mesmo nenhum artigo de sua lavra se fez presente em nenhum jornal. Como Ministro da Educação, e pretenso filósofo, por que o zelo e o respeito à Verdade, ao bom senso (no mínimo linguístico) não partiu do Doutor Janine Ribeiro ao modo de um pedido de desculpas pública ou mesmo de uma justificativa? Se todo empreendimento humano bem-sucedido é espontâneo, seu contrário também é verdadeiro, de modo que o artificialismo e a postura seletiva denunciam uma amesquinhada miséria humana, frequente naqueles que sacrificam a Verdade em nome de seus próprios interesses.
Por conseguinte, um bom critério filosófico para diferenciar a verdadeira filosofia daquela departamental, é perguntar para si mesmo – e, na medida do possível, buscar responder com isenção e sinceridade – o que um jornalista certa vez perguntou ao escritor argentino Jorge Luís Borges: “O que o Senhor faria se fosse nomeado Ministro de Economia?”. Borges não titubeou: “Renunciaria!”. Entre os doutores e analfabetos funcionais deste país, quantos tomariam posse antes da renúncia?