Romance de estreia de Julia Dantas é o diário de uma viagem para a qual o leitor não foi convidado

“Ruína y leveza”, de Julia Dantas (Não Editora, 2015, 208 páginas)

“Ruína y leveza”, de Julia Dantas (Não Editora, 2015, 208 páginas)

Ruína y leveza, de Julia Dantas, tem uma trama frouxa, multívaga e perecível ao tempo de leitura. Ao virar a última página, o leitor tem plena certeza de que a jovem autora porto-alegrense o escreveu para si. De que se está diante de uma narrativa dentro de uma redoma de vidro, que impede qualquer relação senão a de mero espectador. O ponto final é realmente o fim da experiência. Nada além. Um livro de areia, evocando Borges.

O mote é dos mais simples: Sara, uma jovem publicitária confrontada pelas responsabilidades da vida adulta, decide abandonar tudo e comprar uma passagem para o mais longe que suas poucas economias permitem. Vai parar no Peru, onde conhece alguém, muda de cidade, conhece outro, muda novamente, participa de uma cerimônia do fogo, conhece mais um e a sucessão de encontros termina numa mina de estanho, na Bolívia.

Esse é o início, de fato. Um desses parceiros de viagem é Lucho, um argentino com quem empreende um relacionamento de picuinhas e de tardio entendimento-quase afeto, que irá convencer Sara a contratarem um guia de ocasião e descerem às profundezas da mina. Embaixo da terra, são surpreendidos por um terremoto, que configura uma atmosfera de tensão e uma (muito) promissora abertura. Mas a expectativa não se cumpre.

O que vem a seguir são relatos de viagem, descrições de paisagens e discussões circulares. Em capítulos que intercalam passado e presente, descobre-se que Sara, ainda em Porto Alegre, terminou o namoro com Henrique, o herdeiro de uma renomada agência de publicidade, e que ficou na fossa, buscando abrigo na casa de Marcela, a fim de ingressar num circuito de festas, porres e pessoas fúteis. Começa a ter um “casinho” com Diogo, aspirante a alguma coisa que não sabe muito bem o que é, que não sabe muito bem o que quer, contudo tem certeza que fora do Brasil é melhor.

Esse é o grande acerto da autora: tratar com mordacidade o expatriamento, incutir em sua protagonista uma postura que pode soar conformista, mas que enxerga com lucidez a decisão pela vida estrangeira. Assim ela fala de um amigo chamado Marcos:

Estava em Londres, trabalhando como um escravo em um pub, ganhando menos do que precisava para comer, sem fazer nada além de trabalhar e dormir e roubar comida da despensa do tal pub, mas era uma experiência única, ele dizia, eu tinha que ir para lá, nossa, como eu tinha que ir para lá e agarrar a vida pelo pescoço e morar com ele e conhecer as drogas mais incríveis do mundo com o salário risível de um lavador de pratos. (…) Por que no próprio país isso seria uma vida suburbana de merda, mas em Londres é uma experiência inesquecível?

Julia ainda se vale desse paradoxo, de modo a dar contornos a uma geração dependente, apática, que substituiu “o choro infantil pela reza”, esperando que um deus, à imagem da mãe, “lhe troque as fraldas”. “Queria abrir mão do livre-arbítrio e deixar que alguém comandasse a minha vida pelos próximos cinco minutos ou dez anos”, roga Sara. Ocorre que esses bons momentos se perdem em meio às andanças insensíveis ao leitor, acessadas unicamente por personagens esboçados, incapazes de despertar interesse por suas histórias, mesmo num caso em que envolve um aborto.

Há problemas ainda com a linguagem que, se tem o tom confessional típico de um diário de viagem, derrapa em pieguismos, ao exemplo de “Era doce como ameixas pretas e vestiu a calça cada vez que saiu da cama…” e “despejou verdades brutas no meu colo como se eu fosse capaz de colocá-las para dormir com canções de ninar”. Os avanços temporais são, por muitas vezes, abruptos, e dispensam personagens que não fecham seus ciclos, desaparecendo como que esquecidos, esquecíveis. A própria relação entre Sara e Lucho tem viradas apressadas.

A literatura gaúcha, por questões geográficas, alimenta uma forte conexão com a literatura hispano-americana, mas nada há de autorreferencial no livro. O uruguaio Eduardo Galeano ganha uma menção, ao vir à tona temas caros ao autor, tal a exploração e o aniquilamento da cultura local, porém a crítica é epidérmica, sem força para acalorar o debate. Em alguns contos da coletânea Pássaros na boca, de Samanta Schweblin, interações imprevistas, em cenários arenosos, transcendem o território paginado e sugerem discussões de natureza social. A propósito, uma frase da autora argentina, sacada de uma entrevista ao La Nácion, ganha pertinência aqui: “Um relato não se escreve totalmente no papel, se completa na cabeça do leitor”.

Ao fim de sua jornada, Sara carrega uma mochila cheia de vivências acumuladas no recorte do tempo em que passou além da fronteira territorial, além da fronteira de si. A do leitor, por outro lado, segue vazia.

Sérgio Tavares

Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.

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