Emmanuel Carrère, J.D. Salinger e nosso fascínio e apego às trevas.
Existem boas resenhas sobre o instigante romance O Reino, de Emmanuel Carrère, como esta na Amálgama e esta outra na Época. Portanto, quero me deter em um aspecto que foi pouco desenvolvido nos comentários de que tomei conhecimento, mas que ocupa uma importante posição, não apenas na obra em questão, mas na tradição cultural cristã e no conjunto da civilização ocidental: o páthos do humano, ou seja, a paixão, a doença e a loucura que nos constituem. Será o Reino, então, a abolição do páthos humano no prometido outro mundo? Ilustro este problema tomando a liberdade de me fazer acompanhar por Franny e Zooey, os caçulas da família Glass criada por J.D. Salinger, que renderam duas novelas editadas com seus respectivos nomes (Franny & Zooey).
A liberdade que tomo não é inoportuna: está lá na página 142 de O Reino um belo parágrafo dedicado às citadas novelas de Salinger. Carrère chega até elas através do antigo livrinho sobre um peregrino russo que, no século XIX, procura obsessivamente descobrir como colocar em prática o que São Paulo pedia: “Orai sem cessar”. Os leitores de Salinger sabem não apenas que foi este livro do campônio russo que deixou Franny transtornada, intratável e, de fato, doente, como sabem de que modo seu irmão Zooey desfez o encanto sobre ela sem destruir a essência da mensagem de São Paulo.
Ao longo de várias passagens mais ou menos atormentadas das reflexões de Carrère, nos deparamos com o páthos do humano, especialmente quando se trata da conduta de Paulo, realçada diante da discreta impassibilidade de Lucas – e, mais ainda, diante do espírito estoico que predominava em vários níveis naquele contexto histórico e geográfico; é sempre oportuno lembrar que Paulo e Lucas eram gregos, consideravelmente letrados e cultos. Pode-se dizer que a moral estoica, senão todo o ideal moral helenista das escolas filosóficas que forjaram a sabedoria grega, resume-se a não transformar a existência em drama. Por outro lado, a dramática conversão de Paulo, passando de cruel perseguidor de cristãos (quando ainda não eram mais do que uma seita de judeus, oriunda majoritariamente de pobres pescadores galileus) a principal articulador do que viria a ser a Igreja, demonstra de que modo o páthos está incorporado à sua conduta veemente e obsessiva. Mais do que isso, em suas epístolas Paulo se dizia mesmo doente, pois sofria de um mal que lhe aguilhoava a carne, embora não tenha dado informações mais precisas a respeito.
Humano, demasiado humano, diria Nietzsche – um dos guias dos quais Carrère se aproxima e se afasta, conforme vai trilhando seu percurso tortuoso. Mas a questão merece um tratamento menos refratário do que o proposto pelo filósofo alemão. Penso no páthos do humano, ou seja, naquilo que Carrère chama de “a loucura de Paulo”, sobre o valor do sofrimento, da dor, do trabalho, da cruz que carregamos, dos pecados que nos tornam humanos; aqui estamos no reino de Dostoiévski, o mestre em nos revelar os tormentos e fraquezas que não se reduzem ao patológico, mas que nos constituem como seres decaídos diante da possibilidade da redenção. Penso no fascínio que tem este páthos, esta paixão, esta perturbação. Penso que o Cristianismo tem um impressionante poder de síntese ao unir a tradição da sabedoria (de matriz grega) ao páthos, ao sofrimento como um ideal (de matriz judaica). Penso que o Romantismo é análogo ao Cristianismo no poder de síntese, e talvez até que o Romantismo seja a nossa religiosidade laica contemporânea, com seu encantador fascínio pelo doentio e misterioso (“A verdadeira vida está ausente”, dirá Rimbaud) e pela vocação a transformar a vida em drama (não é esta a essência do romance?). Penso, sempre estimulado pelo confessionário da intimidade de Carrère, na inviabilidade do budismo no Ocidente. Nosso desejo por luz é tão profundo e vital quanto nosso fascínio e apego às trevas.
Mas o grego cristão Lucas está além. Se comparado a seu companheiro Paulo, Lucas cumpre o luminoso papel de Zooey diante de Franny – supera o drama (e a doença!), mas de um modo elevado, em que “arranca-a dessa mania, ao mesmo tempo que a aprova em suas últimas consequências”, como sentencia o autor. Na interpretação que Carrère faz de Lucas, o Reino é deste mundo, ao mesmo tempo que o transcende. É um koan indecifrável, mas perfeitamente compreensível para quem, como Salinger, sabe que a Senhora Gorda é nossa salvadora. Através de Lucas, Carrère nos mostra, como Salinger já o fizera com a família Glass¹, que já estamos no Reino.
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¹ Não será despropositado chamar a atenção, ainda, para outro paralelo: se as epístolas fundamentam todo o poder de influência da doutrina de Paulo, são as cartas de Seymour e Buddy que, lidas e relidas com um fervor quase místico e uma reverência quase sagrada, alimentam os anjos e demônios da família Glass.
Lucas Petry Bender
Servidor público, nascido em 1985, vive em Porto Alegre. Escreve sobre cinema em personacinema.com.br e no estadodaarte.estadao.com.br.
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