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Lembram quando a arte tinha que ser bela?

por Amálgama Traduções (22/10/2016)

Na cena artística atual, a palavra “beleza” sequer é parte do léxico.

Sohrab Ahmari, Wall Street Journal
trad. Daniel Lopes

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Logo após tomar o poder em 1979, o novo regime islamista do Irã decidiu transformar a identidade do país por meio de uma “revolução cultural”. Seguidores do aiatolá Khomeini fecharam temporariamente as universidades, expurgaram milhares de professores e estudantes ideologicamente suspeitos e reescreveram completamente os currículos.

Minha mãe, na época estudante de arte em Teerã, lembra bem como os revolucionários, usando máscaras, invadiram as grandes bibliotecas do país para riscar dos livros de arte imagens ofensivas. A nascente República Islâmica estava lutando uma guerra sangrenta contra o Iraque naqueles anos, mas havia também uma guerra na frente interna: contra esculturas helenísticas, o nu renascentista e o cinema americano.

Crescendo em meio àquele clima, me vi alertado para o poder da grande arte. O regime de Khomeini era um estado policial aparentemente onipotente, que dizia derivar sua legitimidade do Deus Todo Poderoso. Não obstante, ele estava amedrontado pela forma humana (e a alma humana) conforme representada por, digamos, Ticiano.

Havia certa conexão entre beleza e liberdade – uma ligação que fiz apenas anos depois, após imigrar ainda jovem para os EUA. Os mulás se valiam da censura e da violência para tentar romper aquela conexão. Mas hoje em dia, no mundo livre, ela vem sendo rompida, não por meio de qualquer regime repressivo, mas por meio do próprio mundo a arte.

Na cena artística atual, a palavra “beleza” sequer é parte do léxico. Sinceridade, rigor formal e coesão, a questão da verdade, do sagrado e do transcendente – todos esses ideais, antes considerados atemporais, foram colocados de lado para abrir espaço para o totem do mundo da arte, seu alfa e ômega: política de identidade.

Sim, identidade é algo que sempre esteve no coração da cultura. Quem somos? Qual é nossa natureza? Como somos – enquanto indivíduos e enquanto grupos – distintos de outros, dos animais, dos deuses ou Deus? Mas a política de identidade pouco se importa com tais questões abertas. Seus adeptos pensam já ter todas as respostas, um conjunto de fórmulas que servem para todos os propósitos e dizem quem está certo e quem está errado em uma interseção particular de identidade, poder e privilégio.

A arte contemporânea é obcecada com a articulação dessas fórmulas em formas singulares. Se você já se encontrou perguntando por que nada se mexe em seu interior quando se depara com a arte contemporânea, é possível que você esteja sofrendo os efeitos da insaciável politização das artes. Cada forma e gênero – seja alta ou baixa, seja nas artes visual, literária ou performática – está agora obcecada com as políticas de raça, gênero e sexualidade.

Neste verão, passei algumas semanas comparecendo ao máximo de peças, exposições, encontros em galerias e projeções que pude encontrar em Londres. Todas tinham alguma coisa a ver com políticas de identidade.

Comecemos pelo teatro. No Globe, construído próximo ao local do teatro original co-fundado por Shakespeare, a nova diretora artística, Emma Rice, está reescrevendo o Bardo para que ele caiba em suas políticas da moda. Entre suas regras está essa: todas as produções devem apresentar uma paridade de 50-50 entre os atores, independente das ramificações que isso possa ter para a narrativa e o significado das peças. “É o próximo passo para o feminismo e é o próximo passo para a sociedade, esmagar os pilares que existem contra nós”, disse a senhorita Rice em uma entrevista recente.

Em Gasworks, uma prestigiosa galeria em Vauxhall, a artista multimídia Sidsel Meineche Hansen utilizou a EVA 3.0, uma figura digital humanoide utilizada em vídeo games e entretenimento adulto, para “explorar a sobreposição entre sujeitos na vida real e objetos na realidade virtual, focando em sua acumulação de capital por meio do gênero binário”. Sua arte degradada, pornográfica, é difícil de descrever em um jornal de família.

Um festival de cinema no Instituto de Artes Contemporâneas foi dedicado aos “temas de identidade social e política”, como dizia no informativo. As dezenas de filmes, instalações e palestras à disposição lidavam com “como as identidades políticas eram retratadas”; “estética negra”; “política enquanto algo que você faz com seu corpo”; “o papel da fotografia enquanto ferramenta colonial”; “cultura, estética e aprendizado através da lente do feminismo contemporâneo”; “políticas representacionais queer”; “política de gênero e representação”; e por aí vai.

Uma exposição grupal na ultra-hip East London foi intitulada “Interpretação de Gênero: Um Evento Multidisciplinar Celebrando Arte, Teatro, Cultura Queer e Igualdade de Gênero”. Em destaque, havia montes de seios plásticos no chão, coletores menstruais colados nas paredes e muitas imagens sadomasoquistas.

Nem a dança está imune. A palestra de um artista na South London Gallery foi dedicada a explorar a “dança e políticas de identidade” e “as virtudes políticas do twerk”.

É inconcebível que tantos diretores, pintores, diretores, dançarinos e artistas performáticos consigam se inspirar apenas com políticas de raça, gênero e sexualidade. Deve haver outros assuntos, no mundo externo ou em suas vidas internas, que mereçam um interesse criativo. No entanto, a atmosfera ideológica do mundo da arte é tão densa e disseminada que aqueles sendo sufocados sequer percebem que ela constitui o ar que respiram.

Esse estado de coisas deveria alarmar qualquer um que se importa com o futuro da civilização liberal. Sociedades livres precisam de uma arte que aspire a ideais atemporais como verdade e beleza, e que labute com as coisas transcendentes sobre o que significa ser humano. É essa arte que permite nos relacionarmos com os outros para além das diferenças identitárias e compartilharmos uma comunidade comum cultural. Quando toda cultura é reduzida a identidade de grupo e ressentimento, a tirania está a um passo de prevalecer.

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Este artigo é parte do livro de Sohrab Ahmari, The New Philistines: How Identity Politics Disfigure the Arts.

Amálgama Traduções

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