Leyla Perrone-Moisés não traz reflexões exatamente novas, porém é interessante essa reunião de boa parte do que foi dito por outros estudiosos sobre diversos temas.
Vivo e sobrevivo de literatura. Não através da escrita, é óbvio, mas sim do ensino da disciplina. Desde os tempos em que era apenas um mero leitor, passando pela condição de leitor acadêmico até chegar à condição de um professor de ensino médio que também escreve, as reflexões sobre ler, criar e ensinar literatura me tomam boa parte do tempo. Quando fui leitor acadêmico, preocupado em digerir a literatura e analisá-la sob o ponto de vista dos teóricos, Leyla Perrone-Moisés, professora da USP, era um dos pratos sugeridos no cardápio universitário, no rol da comida brasileira, mas com pretensões europeias, mais precisamente francesa. Para mim, era como entrar num banquete para uma aristocracia. O tempo, claro, desfez essa ideia.
A minha trajetória acadêmica passou, óbvio, pela graduação e, cinco anos depois de formado, pelo mestrado, com direito a ministrar aulas para uma turma do curso de Letras como estagiário (experiência frustrante pelo desconhecimento e a falta de interesse pela literatura por parte dos alunos, em sua maioria querendo apenas lecionar língua inglesa). Posso dizer que, ao contrário do que se apregoa, a universidade estuda sim a literatura contemporânea, não se fixando apenas nos autores canônicos. Acontece que os ensaios de professores e pesquisadores ficam escamoteados em publicações lidas apenas por outros professores e pesquisadores, num diminuto grupo que produz apenas pensando em somar pontos para seu currículo Lattes. Livros como o recente de Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI, quebram, de certo modo, essa barreira, apesar de interessar mais ao público da academia.
A obra se divide em duas partes. A primeira trata das mudanças na literatura e na cultura. Entre os temas, o tão propalado fim da literatura (porém “o cadáver está bem vivo”), a pós-modernidade (marcada pela fragmentação, pela paródia, pelo ludismo, que na verdade sempre estiveram presentes nas obras artísticas), a crise da crítica literária (com menos espaço nos jornais, mas com fôlego novo na internet) e os problemas relativos ao ensino de literatura (reflexo dos problemas da educação de uma forma geral). A segunda parte foca na narrativa contemporânea, trazendo para a análise questões relativas à metaficção e à intertextualidade (analisando a obra do espanhol Enrique Vila-Matas), à autoficção (a partir do ensaio sobre o fenômeno Karl Ove Knausgård), à distopia (sobre Michel Houellebecq e outros autores), ao “romanção” (Graça infinita de David Foster Wallace e outros tijolos), à literatura exigente (W.G. Sebald, Juliano Garcia Pessanha…), etc. A poesia não foi contemplada, tampouco o gênero dramático. Uma análise de como a lírica vem se desenvolvendo na era da internet e pelo menos um ensaio que explicasse por que o texto teatral quase não vem sendo publicado em livro no século XXI fariam jus ao título do livro.
Perrone-Moisés não traz reflexões exatamente novas, porém é interessante essa reunião de boa parte do que foi dito por outros estudiosos sobre diversos temas, costurado por análise de obras narrativas publicadas a partir dos anos 90 do século XX. Ela nota, por exemplo, o aumento do número de autopublicações de autores estreantes, bem como o interesse que estes têm de, no fundo, alcançar grandes editoras. Lembra também que, apesar dos e-books, ainda há um “fetichismo do livro”, principalmente ao se referir a leitores que comentam suas leituras em vídeo na internet: “A maneira como eles mostram e manuseiam os volumes que possuem revela um apego ao objeto, que se orgulha de ‘ter’, em oposição inconsciente ao mundo digital em que eles estão, no qual nada é palpável.” Nada de novo no front.
Causa-me estranheza quando a professora, que defende em vários momentos a alta literatura, com a mesma firmeza diz que, na escola, “os professores têm por função mostrar que a leitura é um prazer e não uma obrigação”. Ora, ela ignora, como costuma acontecer com os críticos acadêmicos, que toda a literatura que o professor pedir em sala de aula será chata para o aluno. Dou um exemplo pessoal, dentre vários que poderia elencar nos meus 12 anos de magistério. Há alguns anos, sugeri (uma dica apenas) a um estudante que gostava de O senhor dos anéis que lesse um livro do mesmo gênero de um cara chamado George R. R. Martim. Ele fez uma expressão de desprezo e não procurou o autor. Dois ou três anos depois, o vejo em sala de aula com o livro A guerra dos tronos sobre a classe (um tijolão, diga-se de passagem). Lembrei-lhe da sugestão e ele disse que não recordava. Ou seja, não adianta o professor sugerir ou obrigar, trabalhar com um autor mais acessível ou mais difícil, contemporâneo ou clássico, o aluno sempre irá rechaçar a leitura.
Falo isso como um apaixonado por literatura e que dá aulas com paixão, lê poemas com uma disposição enorme e recebe aplausos pelas leituras. Fica só nisso, no entanto. Não há uma forma certa de lecionar literatura, assim como não há uma forma certa de ler, muito menos de escrever, tampouco de compartilhar o conhecimento adquirido (ainda mais sabendo que o interlocutor despreza o que você tenta ensinar). Já considero uma vitória se pelo menos um aluno desperte algo dentro de si e chegue, com isso, ao mundo dos livros por conta própria.
Também não fica clara a posição da autora quanto ao politicamente correto no âmbito da literatura. Se num primeiro momento ela critica ações afirmativas que resultam em “balcanização dos estudos literários”, logo depois critica estudiosos como Roger Shattuck, por “suas posições retrógradas, moralistas e preconceituosas” ou defensores do cânone, como Harold Bloom. Aliás, diga-se, Perrone-Moisés mostra uma tendência a criticar quem é conservador ou neoliberal. Para ela, as considerações de Vargas Llosa em Travessuras da menina má “revelam um amoralismo e um otimismo típicos da sociedade neoliberal”. A ideologia política acaba nublando a visão literária.
Leyla Perrone-Moisés acerta, no meu entender, quando põe objeções às mudanças do ensino médio cujas discussões se arrastam há anos (é bom lembrar que o livro foi escrito antes das últimas medidas do MEC). Vem-se tentando, e com sucesso infelizmente (a prova de Linguagens do ENEM é um exemplo), transformar a literatura em apenas mais “uma técnica de linguagem verbal”. No entanto, afirma ela, “por ser criação de significados a partir de dados da realidade, a obra literária, diferentemente dos textos verbais apenas comunicativos, diz algo em determinada forma (grifo da autora), mais complexa, mais rica, mais ambígua.” A Literatura, portanto, não deveria ser um mero apêndice (que muitos desejam extirpar) das aulas de Língua Portuguesa.
Tentando entender o uso reiterado da palavra mutação em vez de mudança, não apenas no título, acredito que tem a ver com a questão mais biológica da literatura, de ela fazer parte do nosso corpo e transformar nosso organismo, seja através da emoção, seja pela razão. A literatura faz parte de nós. Sem ela, nos tornamos seres incompletos. Ensaios como os desse livro, por conseguinte, ajudam a completar as lacunas do ser e mantêm a literatura viva.
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.