Como Geraldo Alckmin assumiu a hegemonia incontestável sobre São Paulo.
Um mistério ronda São Paulo: como Geraldo Alckmin, um político insípido, de resultados pífios, nada populista e nada carismático, se tornou a principal liderança do estado? E fez isso desbancando lideranças muito mais promissoras: Maluf, Quércia, Lula, Marta, Kassab, Serra, Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer… Qual o seu segredo?
Muitas explicações já foram dadas para este fenômeno – a maioria repleta de ressentimento petista: conservadorismo paulista, antipetismo, máquina do estado, complacência da mídia… Nenhuma delas sobrevive a um mísero sopro. A eleição municipal de 2016, uma vitória do alckmismo, mostra que há algo mais. Alckmin tem uma força própria em São Paulo, com presença na base e expressão eleitoral. Uma força pouco compreendida e, por isso, nunca derrotada.
Neste ensaio, procuraremos traçar um perfil deste fenômeno político chamado alckmismo. Para isso, procuraremos primeiro entender como funciona o eleitorado paulista em seu aspecto mais orgânico e estável. Depois veremos como o PSDB, em primeiro lugar, e Geraldo Alckmin, na sequência, soube tirar proveito destas características em seu favor, aproveitando-se das fragilidades do quercismo, malufismo e petismo. Por fim, construiremos um retrato do alckmismo enquanto força hegemônica atual.
Aspectos do eleitor paulista
Em A transformação do eleitor paulistano e a eleição de 2016 exploramos longamente a divisão do eleitorado paulista em quatro grandes perfis sócio-ideológicos:
* O conservador, formado por representantes de todas as classes sociais que estão descolados da estrutura econômica central ou são dependentes do estado, ou seja, profissionais liberais, fornecedores do estado (elite) e lumpemproletariado (periferia)
* O tecnocrata, oriundo da elite econômica
* A esquerda, formada essencialmente pelo sindicalismo e pela intelectualidade popular
* O hipster, força ascendente relacionada à economia criativa
Tradicionalmente, as principais forças políticas de São Paulo se fortaleceram por conseguir reunir sob sua liderança pelo menos dois perfis ideológicos. Assim, o ademarismo e o malufismo aglutinaram o eleitor conservador e o tecnocrata, enquanto que uma centro-esquerda assumiu em parceria com a tecnocracia – casos de Jânio Quadros, Franco Montoro e Mário Covas. O quercismo começou em aliança com a esquerda e migrou para o conservadorismo.
No artigo sobre São Paulo, vimos que uma mudança na estrutura social do empresariado, chamada por Roberto Grun de Revolução dos Gerentes, mudou a relação dos executivos com o poder. Álvaro Bianchi analisou essa mudança em sua pesquisa sobre o posicionamento político da Fiesp nos anos 1980 e 1990. Basicamente, a ascensão de uma geração de executivos MBA alterou a lógica empresarial e transformou o capitalismo de compadrio em algo mais impessoal e técnico. O favorecimento das elites econômicas pelo Estado se daria sobre novas bases.
Mas há um aspecto que trabalhamos pouco: o caráter orgânico do eleitor paulista. Diferentemente de outros locais, como o Rio de Janeiro, uma grande parcela do eleitor paulista se organiza em clubes de opinião, formais ou informais. É o sindicato, a empresa, a associação de bairro, a igreja, o clube de futebol, a loja maçônica, enfim. Por isso, uma boa parte dos políticos paulistas são, de certa forma, líderes de grupo. Essa organicidade se vê da direita à esquerda. Um vereador malufista folclórico em São Paulo, José Izar, era eleito com o slogan “Corinthiano vota em corinthiano”, e perdeu força quando descobriram que ele era sãopaulino.
Há eleitor desorganizado? Sim. Eles são movidos por Tiriricas, mas mais especialmente pelo personalismo conservador. O eleitor de esquerda é mais orgânico, o tecnocrata também. Até os anos 1990 o voto desorganizado ia para o Maluf – ou para Francisco Rossi, em 1994. Hoje vai para Alckmin.
Uma história do Geraldo
Geraldo Alckmin era um cara do baixo clero tucano até ser escolhido como vice-governador de Mário Covas, em uma chapa composta apenas por PSDB e PFL em 1994. Não era uma eleição fácil: apesar de largar na frente, capitalizando no estado o resultado do Plano Real, acabou vendo seus eleitores – tradicionalmente de esquerda – migrarem para José Dirceu e Francisco Rossi, quem acabou enfrentando no segundo turno.
Após um mandato difícil, com o estado paralisado por uma dívida enorme produzida pelos governos Quércia e Fleury, Covas conseguiu se reeleger a duras penas, enfrentando um Maluf no auge da sua força política e disputando votos com um petismo ascendente. Para vencer no segundo turno, foi fundamental que Covas atraísse para si o voto anti-Maluf, e para isso adotou uma postura fortemente agressiva na campanha. Mas no primeiro turno o PSDB estava isolado: o PFL apoiava Maluf, que fazia campanha usando a imagem de FHC, e o PT quase foi ao segundo turno com Marta Suplicy. Este isolamento explica porque Alckmin permaneceu como vice na chapa.
Já dizia Maquiavel que o Príncipe precisa contar com a virtude e a fortuna, e esta sorriu a Alckmin no meio do segundo mandato. Até então inexpressivo, incapaz de ir ao segundo turno contra Maluf na disputa pela prefeitura, recebeu o cargo de governador no colo com a licença de Covas para tratar de um câncer na bexiga em janeiro de 2001. Com a morte do governador, Alckmin assumiu em definitivo.
Havia várias vantagens para Alckmin naquele momento. A maior de todas era o saneamento das contas públicas estaduais, promovido por Covas nos seis anos anteriores. Isso permitiu que seu governo fosse mais ativo, especialmente em relação a obras públicas e à segurança pública. Isso lhe permitiu atravessar a prova de fogo das eleições de 2002, quando partiu atrás de Maluf, passou a dianteira e venceu o petista José Genoino no segundo turno.
Destucanização e organicidade
A gestão Alckmin se caracterizou por um forte processo de destucanização da gestão. As secretarias foram atribuídas a notáveis ligados à academia, como José Goldemberg e João Meirelles. Cada um se cercou de quadros técnicos, com burocratas do partido pulverizados entre eles.
Isso fez com que Alckmin passasse a imagem de “não político” – curiosamente, a mesma abordagem de Doria. Mas, de forma curiosa, Alckmin estreitou sua relação com os políticos, principalmente prefeitos não petistas e lideranças opositoras a prefeituras do PT. Não só prefeitos, deputados estaduais foram cooptados por meio da transferência de recursos orçamentários.
O uso do orçamento para fidelizar uma rede de prefeitos favoráveis já havia sido adotado por Quércia, mas não com a mesma competência que Alckmin. Desta forma, ele deu organicidade ao seu projeto, transformando cada um dos prefeitos e deputados estaduais em um procurador do governador.
A única rede capaz de se contrapor ao alckmismo orgânico era o sindicalismo petista, especialmente de professores estaduais, integrados às prefeituras do partido sob o slogan “O PT é bom de governo”. De fato, esta rede, vitaminada pelo governo Lula, teve seu auge em 2008, quando fez o maior número de prefeituras de sua história no estado, 64 no total. Mesmo onde perdia, o petismo se impunha como uma ameaça consistente ao grupo político no poder.
De certa forma, isso empurrou a centro-direita ao colo de Geraldo Alckmin. Para fazer frente ao petismo, lideranças locais precisavam de resultados, e a proximidade com o governador garantia recursos, apoio técnico, capital político e, especialmente, independência em relação ao governo federal. Mesmo prefeitos e deputados de partidos da base aliada em nível nacional capitalizavam a proximidade com o governador Alckmin. Campos Machado, principal liderança estadual do PTB de Roberto Jefferson, dizia com orgulho na Assembléia Legislativa que seu partido era “contra CPIs tanto em Brasília quanto em São Paulo”.
Inimigos internos e externos
Se o PT e sua rede orgânica se impunha como principal inimigo externo à hegemonia de Alckmin, José Serra se articulava como seu principal adversário interno ao PSDB. A luta surda entre Serra e Alckmin envolvia partidos aliados e ambíguos em nível estadual. Como ambiguos podemos considerar o PSD de Kassab, criado para fragilizar o DEM nacionalmente e vitaminar a base do governo federal petista, e o PMDB de Quércia e Temer.
Tanto Kassab quanto Quércia e Temer tinham seus projetos próprios em nível estadual, e eles cruzavam o caminho de Alckmin. Mais dele que de Serra ou do PSDB. Kassab não esconde sua pretensão de assumir o governo do estado em algum momento, e o PMDB quer recuperar o cargo que perdeu para Covas em 1994.
Kassab foi o primeiro se aliar com Serra, enfrentando e derrotando o próprio Geraldo Alckmin para a prefeitura em 2008, ainda pelo DEM. Depois apoiou o governador em seu retorno ao governo em 2010, para logo após desidratar sua base de apoio com a formação do PSD em 2011. Alckmin aproveitou o racha do DEM para fortalecer os adversários de Kassab em seu partido de origem e colocá-los em posições estratégicas no governo, substituindo exatamente os adeptos do racha kassabista. Um bate boca entre Kassab e Rodrigo Garcia na sede da Secretaria de Desenvolvimento Econômico tornou-se notório à época, expondo o nível do racha democrata.
Quércia aliou-se a Serra em 2010. Tornou-se candidato ao senado na chapa de Alckmin, e quando se viu com a saúde agravada fechou um acordo com Aloysio Nunes Ferreira para transferir seus votos e sua equipe. Nunes Ferreira seria depois um dos nomes contrários à candidatura de João Doria à prefeitura de São Paulo. Em paralelo, o PMDB tentou tirar de Alckmin o apoio empresarial, lançando a candidatura de Paulo Skaf ao governo do estado em 2010 e 2014.
Em paralelo, Serra atuou pela desidratação interna de Alckmin. Atraiu para o seu lado tucanos paulistas históricos, vazou informações sobre o estilo de governar de Alckmin com o objetivo de prejudicá-lo, procurou isolá-lo dentro do partido. Luís Nassif, um jornalista cuja idoneidade é inquestionável (#sqn) fez questão de espalhar a história de que Alckmin anotava os pedidos dos prefeitos em um “caderninho”, e que por isso tinha o ódio dos prefeitos do interior. Era um torpedo de dentro do PSDB, com o objetivo de atingi-lo.
Nenhuma dessas iniciativas vingou. Uma das razões é que, diferentemente do que disse o Nassif à época, os prefeitos sempre ficaram mais próximos a Geraldo Alckmin. Ele conseguiu mantê-los ao seu lado todos esses anos, em grande parte devido a diferenças de estilo com José Serra. A principal era que Serra não aceitava menos que submissão, enquanto Alckmin os tratava como um igual. O mesmo pode-se dizer do empresariado, que não se vê representado no estilo populista de Skaf.
O único bastião anti-Alckmin era a capital. Ali, a disputa se dava entre seus inimigos. De um lado, o PT de Marta e Haddad. De outro, o PSDB serrista, Kassab e o PMDB.
Alckmin e junho de 2013
Em junho de 2013, Alckmin foi exposto a ao seu maior teste de estresse, com as manifestações contra o reajuste da passagem. Em princípio, viu-se igualmente acuado junto do prefeito recém eleito Haddad. Mas, diferentemente deste, recuperou-se depressa e conseguiu se reeleger no primeiro turno em 2014. Como foi possível?
Novamente a sorte sorriu ao governador. A insatisfação latente que explodiu em junho não era exatamente contra ele, mas contra as promessas não cumpridas do pacto lulista. Especialmente na classe C ascendente, haviam prometido o céu, mas lá ainda era necessário usar serviços públicos, e eles eram a antevisão do inferno.
Neste quesito, Alckmin se saía melhor que a prefeitura Kassab/Haddad e o governo Lula/Dilma. A educação era sofrível, mas havia o que mostrar na saúde, segurança e mesmo transporte. Apesar do trensalão e da lenta expansão da rede de metrô, o transporte sobre trilhos, do estado, é melhor que o sistema de ônibus, da prefeitura.
Além disso, quem puxava as manifestações nunca esteve ao seu lado, logo Alckmin não perdia nada com as manifestações. O PT sim. Perdido quando foi acuado pelas ruas pela primeira vez, o petismo começou a construir a narrativa do golpe, que ainda hoje vê jacaré debaixo da cama.
Da mesma forma, Alckmin conseguiu sobreviver à crise hídrica. Combinando um discurso “João sem braço” de que fora surpreendido pela mudança climática com um plano de obras agressivo, conseguiu um voto de confiança da população. E, como é seu estilo, trouxe para perto de si os quadros técnicos que mais o criticaram, como Jerson Kelman, presidente da Sabesp. Kelman era uma estrela do MME de Dilma.
A construção do João Trabalhador
Não é segredo para ninguém que Geraldo Alckmin confia mais nos seus que nos parceiros de partido. Por isso, sempre que pôde apoiou para a prefeitura de São Paulo candidatos neotucanos:
* Em 2004 seu plano original era Alexandre de Moraes, mas foi obrigado a engolir José Serra. Mesmo assim, só entrou em sua campanha quando Marta tentou explorar ingenuamente a rivalidade entre os dois.
* Em 2008 saiu candidato ele próprio, e sofreu sabotagem de Serra em favor de Kassab
* Em 2012 apoiou discretamente a candidatura de Chalita pelo PMDB, que não decolou
Em 2016, era importante novamente ter um candidato de sua confiança. O PSDB de Serra e dos tucanos históricos estavam fechados com Andrea Matarazzo, então o governador jogou duro ao lançar João Doria, um empresário que nunca disputou uma eleição, mas disposto ao que fosse preciso para vencer.
Para a candidatura Doria, atraiu o apoio das famílias Montoro e Covas, legitimando a candidatura perante a militância histórica. E foram às prévias mais duras da história do PSDB, cujas feridas ainda não cicatrizaram.
Como reação, a tríade Temer-Serra-Kassab articulou o golpe perfeito. O PMDB cooptou Marta, campeã de votos na periferia. O PSD recebeu Matarazzo, filho da tradicional família de industriais paulistas. E os partidos se uniram na chapa mais insólita da história da cidade, que lançava Marta contra o petismo. Até o último minuto, a dissidência tucana contra Doria colocou suas fichas na chapa Marta-Matarazzo.
Nunca a sorte sorriu tanto para o governador. De uma só vez, derrotou o PT – na capital e no interior – e a tríade Temer-Serra-Kassab. Estamos, portanto, diante do auge do alckmismo.
Matéria, forma é poder do alckmismo
Mas o que é o alckmismo? Sim, trata-se da mais estável coalizão de centro-direita à frente de São Paulo. Mas Alckmin não é a continuidade de Maluf – exceto pelo sobrenome árabe. Seu estilo e organicidade são diferentes do malufismo, do petismo e dos tucanos tradicionais.
Primeiro, Alckmin é a hegemonia da tecnocracia. É semelhante, neste sentido, aos mandatos de Lucas Nogueira Garcez e Carvalho Pinto, mas mais estável que estes. Ao mesmo, o alckmismo é uma rede de lideranças locais em torno do governador. O que os une é a negação do petismo e o fluxo de recursos para políticas públicas municipais.
Isto torna ainda mais interessante sua hegemonia. Porque ela não se dá sob bases clientelistas. O eleitor de Alckmin não vota nos seus aliados em troca de favores, mas porque recebe serviços públicos estaduais em seu município. A imagem do governador se espalha em obras como conjuntos do CDHU, AMEs, Poupatempos, hospitais administrados por Oscips, escolas técnicas e presídios.
De certa forma, isto torna sua presença tangível para o eleitor mais pobre. Por isso, ser aliado do governador é um ativo político importante para o prefeito. É como se Alckmin fosse uma grande franquia política, e os líderes locais os franqueados.
Ao mesmo tempo, neste modelo a corrupção é terceirizada para os franqueados. Nenhum caso de corrupção, nem mesmo o trensalão, chegam perto de Alckmin. Os principais nomes do trensalão, como Matarazzo e Mauro Arce, são ligados ao PSDB de Serra. Alckmin passa ileso. É diferente do petrolão, onde as provas apontam ao mais ilustre morador de São Bernardo do Campo.
Ou seja, o alckmismo é uma forma burocrática, técnica, orgânica e antipolitica de hegemonia. De certa forma, ela responde a um estado de São Paulo pós industrial. Mas seria ela também uma forma “conservadora”?
A qualificação de São Paulo como conservadora diz respeito ao antipetismo crescente no estado, paralelo à ascensão de Geraldo Alckmin. Mas seu caráter tecnocrático afasta qualquer visão conservadora. A liderança de Alckmin em nada se assemelha a um Sarney ou Jader Barbalho. Embora mais próximo, tampouco é igual a Aécio Neves, Tasso Jereissati, Collor ou Eduardo Campos. Nestes, uma liderança carismática promoveu uma reforma tecnocrática no estado. Alckmin não é carismático.
Trata-se, isso sim, do que há de mais próximo de uma hegemonia liberal no Brasil de hoje. Uma estrutura orgânica formada pela base – os prefeitos – com uma gestão técnica ao topo. É similar a um regime parlamentar distrital. Justamente por isso, não pode ser derrotado pela cúpula. Quem quiser enfrentar Alckmin precisa saber desmontar sua rede de apoio, ou seja, cooptar os prefeitos franqueados. Não será fácil.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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