A "guinada à esquerda" de Alckmin tem a ver com a disputa interna com João Doria. Um eventual governo seu poderia ser liberal.
Recentemente, o governador Geraldo Alckmin, em evento do grupo “PSDB Esquerda pra Valer” soltou a frase: “O laissez-faire, o liberalismo completo, é a incivilização. Porque é o grande comer o pequeno. O rico esmaga o pobre”. Uma frase de efeito, que não quer dizer muita coisa – afinal qualquer um pode dizer que X ou Y é “incivilizado” ou usar qualquer outro adjetivo pejorativo –, mas que agradou aos ouvidos da plateia presente. Nada mais natural. Trata-se de um político falando dentro de um contexto, não só o do evento em questão, mas de uma disputa mais ou menos velada contra João Dória, outro potencial candidato tucano a presidente, “cria política” do próprio governador, e que adota mais abertamente um discurso liberal.
Mas para além das frases de efeito, dos discursos que jogam para a plateia e das disputas internas, a partir dessa declaração podemos refletir sobre os limites e possibilidades do liberalismo na atual conjuntura política e econômica do Brasil. Falar em “o” liberalismo, de maneira homogênea e unívoca, é muito complicado (assim como falar em socialismo, conservadorismo, social-democracia etc.), uma vez que existem vários autores, escolas de pensamento que podem ser classificados como “liberais”, mas que possuem ideias significativamente diferentes, apesar dos pontos em comum. Quando se fala em exemplos históricos de governos, a situação fica mais complicada ainda. Afinal, por mais ideológico que seja, nenhum governo age estritamente conforme um manual, mas responde a pressões e circunstâncias.
Diante disso, o que viria a ser o liberalismo possível de ser aplicado por um governo na atual situação do país? Com exceção de alguns partidos que dificilmente chegam a 1% dos votos para presidente, ninguém defende uma economia planificada e totalmente controlada pelo Estado. Dessa forma, a possibilidade de “socialismo” é completamente descartada, poderíamos dizer. A disputa real seria então entre duas agendas econômicas. Uma, mais nacional-desenvolvimentista, aos moldes da chamada “Nova Matriz Econômica”, caracterizada por proteção e incentivos à indústria nacional, através de créditos subsidiados, crédito para consumo e altas tarifas protecionistas, e também pouco preocupada e atenta ao equilíbrio orçamentário e às metas de inflação. Muitas vezes, esse tipo de política acaba justamente com os grandes, os “campeões nacionais”, esmagando os pequenos.
Do outro lado, uma política econômica mais “fiscalista”, com o equilíbrio das contas públicas e a estabilidade da moeda desempenhando papel central, mais amigável à abertura econômica e à inserção do país no comércio internacional, podendo ser complementada com a diminuição da burocracia, flexibilização trabalhista e outras reformas, partindo do princípio de que não são os incentivos e a proteção do Estado que trazem o desenvolvimento, e sim um ambiente de maior confiança e mais propício à atividade econômica, com instituições (regras do jogo) mais impessoais, previsíveis e calculáveis. Não é preciso se esforçar muito para perceber que a possível agenda de Alckmin se adequaria mais à segunda opção, que poderia, sem muitas dificuldades, ser classificada como liberal, ou mais liberal do que a primeira opção colocada.
No entanto, Alckmin (e o PSDB de maneira geral), de perfil mais conciliador e centrista, costuma evitar as grandes polêmicas ideológicas. E tem certa razão nisso, afinal o eleitor, quando vota para presidente, procura uma postura desse tipo e evita candidatos muito ideológicos. No atual momento, porém, antes de se confirmar como candidato do PSDB, o que é o mais provável, a disputa de Alckmin é contra Dória e o liberalismo mais acentuado associado a este. Na eleição presidencial, a disputa será contra o PT, que não parece ter se distanciado das ideias da “Nova Matriz” e se reaproximado da linha mais “paloccista” do primeiro governo Lula; contra Ciro Gomes, que tem adotado o discurso em favor de um “projeto nacional de desenvolvimento”; e contra Bolsonaro, que vez ou outra adota um discurso mais liberal, tentando conquistar uma parte do eleitorado, mas é ambíguo nessa questão e muitas vezes se aproxima de um pensamento econômico nacionalista ao exaltar as “riquezas nacionais” e hesitar em questões como privatizações, reforma da previdência etc.
Nesse contexto e num eventual governo, que tem grandes chances de ser concretizado, a postura de Alckmin muito provavelmente será mais liberal, embora, assim como fez FHC, talvez tente afastar de todo modo o estigma de “neoliberal”. Esse jogo de palavras, muitas vezes vazio de sentido, faz parte da disputa política. No entanto, os setores liberais mais pragmáticos podem ficar despreocupados com a “guinada à esquerda” de Alckmin, no sentido de política econômica (que, não custa lembrar, não é de forma alguma avessa a uma agenda mais “progressista” de políticas sociais), e a “esquerda pra valer” sabe que o pragmatismo da política vai muito além das frases de efeito.
Caio Vioto
Mestre e Doutorando em História pela UNESP.
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