O nu artístico de Raskólnikov

por Pedro Almendra (02/10/2017)

A arte moderna é, por vezes, vítima de artistas que se presumem extraordinários e ignoram o caminho comum do ofício.

“Raskolnikov’s Dream”, de Mikhail Shemyakin (1964)

“A Tradição é uma questão de significado muito mais amplo, não pode ser herdada[…]. Envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico que podemos dizer quase indispensável para quem quer que queira continuar a ser poeta para além do vigésimo quinto ano de vida.” (T.S. Eliot, Tradition and individual talent)

 

No romance de Dostoiévski, Crime e castigo, o personagem principal – Rodion Românovitch Raskólnikov – presume-se um “homem extraordinário”. Isto é: acredita fazer parte de um grupo de homens de gênio superior ao do homem ordinário. E crê também, Raskólnikov, que não se aplicam a este grupo as mesmas leis e limites dos homens comuns. Portanto, ao presumir-se um homem extraordinário, ele abstém-se das leis que limitam a massa comum e assume o direito (por vezes o dever) de rompê-las a seu bel prazer.

Entretanto, seu destino é irônico: ao tentar provar a si mesmo que era um ser extraordinário, fez uma extraordinária bobagem. Assim que matou duas senhoras para conseguir dinheiro, revelou-se medíocre: não conseguiu sequer roubá-las direito e ficou a bater sua cabeça contra a parede no decorrer do romance, pelo bem de sua paranoia.

Mas eis o que importa notar: o grande erro de Raskólnikov, e o motivo de seu fracasso, foi ter posto como substancial uma diferença que é tão somente acidental. Ou por outra: ignorou que o grande homem não é outro tipo de homem, mas antes o mesmo homem comum que cresceu de modo comum – dia após dia, pelo ofício, trabalho e esforço.

Ao ignorar essa ponte que há entre os dois destinos, o personagem de Dostoiévski ficou em desespero diante de apenas duas fatais opções: ou já se é, ou nunca se será extraordinário. E, pois, a única saída que encontrou foi jogar dados com seu destino – desenvolveu uma fé na hipótese positiva e depois saiu a testá-la na prática, para saber logo de que lado ficou. Se fosse um homem extraordinário, daria tudo certo, e se não fosse, daria tudo errado. Como sabemos, deu tudo errado.

Tal qual Raskólnikov, existem outros adeptos do mesmo erro romântico. A filosofia que motivou o assassinato das duas senhoras fictícias é, hoje, ainda forte e viva, por exemplo, na classe artística. A única diferença, talvez, é que nas artes essa filosofia romântica toma a forma de “gênio” no lugar de “homem extraordinário”. A arte moderna é, por vezes, vítima de artistas que, herdeiros do romantismo, se presumem homens extraordinários e ignoram o caminho comum do ofício. Como Raskólnikov, eles julgam que o gênio existe ou não existe, e ignoram que este, se real, é conquistado e não herdado.

É por meio da mesma confusão pontuada por Dostoiévski que temos tantos jovens poetas prontos para mudar os rumos da língua portuguesa, da métrica, da Igreja e do Estado. Sem que, para isso, sequer estudem a língua, a métrica, a Igreja ou o Estado. Para além dos limites formais, não é incomum que estes gênios abram mão também dos limites morais. Daí que tantos tomam como missão a transgressão dos últimos valores – pois acreditam que eles mesmos nunca foram limitados por valor algum, quer da lei, quer da natureza. O gênio é, dessa forma, visto como um ser que olha o mundo de cima para baixo e brinca com os limites morais e formais que regem os homens comuns; detentor de uma inquestionável e dogmática liberdade – a artística.

E, reféns do mesmo misticismo romântico que atormentou Raskólnikov, aos gênios fica o mesmo desespero. Ao esquecerem de que o “gênio” e o homem comum são dois estágios do mesmo homem, disseram um não definitivo à possibilidade de se tornarem verdadeiros gênios. Insisto: quando se tira o ofício, sobra apenas uma abstração chamada “talento”, ou, talvez, “dom”. Que, não nego, pode até existir, mas se perde quando jogado à anarquia da vontade.

Restou-lhes, portanto, que permanecessem crentes no próprio talento e saíssem por aí testando esse credo na prática, até que o milagre se concretizasse. Como fez Raskólnikov.

Desses vários testes, porém, vem sempre o mesmo resultado já antecipado por Dostoiévski: a extraordinária bobagem. Por vezes a vítima do teste não é assassinada, como a de Raskólnikov. Na maioria dos casos, a vítima é o inocente que gastou seu dinheiro nos livrinhos de poesia e acabou por sofrer a tortura de ler algumas duas páginas. No caso polêmico do Museu da Arte Moderna, por exemplo, a vítima do extraordinário homem, agora nu, foi a ordinária criança, junto, é claro, da ordinária plateia que já se cansou dos incessantes apelos ao nu “artístico”. Aliás, há algo mais kitsch do que um artista, em pleno 2017, tentar romper tabus com um pinto de fora? Bem, variam as vítimas, mas o fundamento se mantém, assim como o ridículo.

Foi, de certa forma, pensando nisso que o poeta Mário Faustino alertou que é preferível fazer poesia em um laboratório do que em um templo. O poeta (o artista) “genial”, quando real, não se tornou assim por rezar um terço em homenagem ao próprio gênio, mas, antes, combatendo esse gênio através do ofício e do aprendizado humilde com os antigos mestres. Caminho comum, que gerou gênios incomuns como o do próprio Faustino. Gênios que, ao invés de descartarem as leis comuns, abraçaram-nas. As vítimas da confusão de Raskólnikov tomam via contrária: estão, nessa mesma noite, no templo, curvados ao próprio gênio, esfregando a lâmpada e fazendo seus três pedidos – “compre meu livro de poesias”, “compre meu livro de poesias”, “compre meu livro de poesias”… É só 5 reais.

Pedro Almendra

Estudante. Vive em Teresina.

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