O provinciano quer título, não conhecimento.
Não vejo melhor caminho para o conhecimento senão no governo das virtudes. E à parte de meu pudor político e de minha completa ojeriza por ideologias, eis a minha insistência melancólica em refletir sobre as ruínas de nossa cultura. Por isso, as minhas citações são sempre por fraternidade, jamais por veneração. Cito ou censuro Goethe ou Machado de Assis, como quem recorda ou repreende a um caro amigo. Nessa conversa com os mortos, não procuro celebração, mas a sua igual honestidade e censura.
Em 1928, Fernando Pessoa lança um diagnóstico do provincianismo português. Não se trata de uma reflexão meramente sociológica, nem totalmente psicológica, como se mostra; ultrapassando seu contingente, no entanto, essa descrição alcança a universalidade tipológica.
Nesse texto, o autor de Mensagem identifica um sintoma da alma portuguesa sob três aspectos: sendo dois do homem comum – a admiração exagerada pelos grandes feitos, pelo progresso e pela modernidade –, e um da mentalidade superior – a incapacidade de ironia. No primeiro aspecto, o provinciano, por incapacidade de gostar, admira-se do que não participa. No segundo, ele se admira da cultura que não produzira, por estar alheio à sua participação. E por fim, no terceiro caso, o provinciano, ainda que entenda, é incapaz de compreender a ironia – “o dizer uma coisa para dizer o contrário.” –, que poderíamos melhor compreender como a sofisticação do pensamento.
Mas convém que o próprio poeta fale sobre o segundo aspecto:
O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. […] O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.
Embora algo pessimista, Pessoa conclui como uma prescrição: “O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro…”
Mas o provincianismo não está relacionado só a comportamentos e dificuldades de produção cultural, mas também à compressão e à assimilação da cultura superior, regional ou estrangeira. No contexto em que Pessoa escreve, os provincianos lusitanos não viam outro poeta relevante depois de Camões, e mesmo que houvesse surgido outro Camões (Pessoa vai “vaticinar” um “supra-Camões”), eles não o saberiam identificar, por incapacidade. Não se trata de sensibilidade estética falha, falta de entendimento; antes de um aparvalhamento que tolhe a compreensão cultural.
É por isso que podemos identificar os mesmos sintomas na mentalidade brasileira. Aqui, não seria exagero afirmar que boa parte de nossa cultura acadêmica é altamente provinciana. Idolatra-se Finnegans Wake de Joyce exatamente por não o compreender. O que se estuda em nossas universidades? A pós-modernidade, a pós-verdade, o espelho da moda… Foucault, Bakhtin, Jauss, Barthes, Adorno, Benjamin… estátuas com pés de barro!
É uma grave enfermidade, mas que em nosso caso apresenta sintomas singulares. Em nossas universidades, sobretudo nos cursos de humanas, o provinciano sente necessidade de se enturmar, deseja ter prestígio, quer ser como o Antonio Candido, almeja ter o bigode de Nietzsche ou ainda gozar das benesses dos mestres. Então, como quem cata os cacos em meio ao entulho cultural, ele recolhe o que pode de referências: no cinema, o Bressane; na música, o Caetano Veloso; na poesia, o concretismo; em política, o socialismo. Logo estará participando de grupos de pesquisa e fumando maconha nas festas de DCE. E uma vez que a produção autêntica, ainda que realmente fraca e incipiente, demande humildade e esforço de compreensão, para o provinciano é mais fácil renegar a própria casa para idolatrar Guevara.
Além disso, são agravantes os problemas de nossa formação, como uma cultura artificial (criada de grupos intelectuais, ideólogos e burocratas, como já analisei), as políticas que sufocam a produção autêntica (porque anulam a liberdade do autor – aí o sucesso das políticas universitárias em esvaziar a autoridade! No palco do debate público, a opinião parece conhecimento!), a idolatria de diplomas e o ódio pelo conhecimento, a mania de controle alheio por meio de boicote e abaixo-assinado etc. Tudo isso transforma os sintomas da mentalidade provinciana numa epidemia monumental.
Essa enfermidade explica, por exemplo, as pilhas de escritores relevantes lançados nas valas do olvido, e mesmo o aparente paradoxo entre as vendagens exorbitantes (como o caso da popularidade de Emiliano Perneta[1]) e a quase nula rivalidade. Mesmo entre os consumidores de cultura, a maioria quer posar de intelectual. O provinciano quer título, não conhecimento. Numa permuta perversa, a mentalidade provinciana brasileira parece sempre tentada a trocar valores por espelhos.
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[1] Sobre o provincianismo de Perneta Cf. TREVISAN, Dalton. “Emiliano poeta medíocre. In Joaquim, nº 2, Curitiba, jun. 1946.
Wagner Schadeck
Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.
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