Nem os bispos e nem o papa parecem rejeitar a ideia de que há contextos em que é proveitoso distinguir “gênero” de “sexo”.
Pipocam por aí projetos de lei proibindo o ensino de “ideologia de gênero” nas escolas. Padres e pastores babam na gravata (ou no colarinho clerical) exasperando-se contra a disseminação da malévola “ideologia de gênero”. Vereadores e deputados assomam às tribunas. Afinal, do que esse povo todo está falando?
A expressão “ideologia de gênero” parece ter sido adotada pela direita como um pejorativo de amplo espectro, mais ou menos como “neoliberal” pela esquerda, um indicador retórico de coisa-ruim a ser combatida mesmo por quem não faz a mínima ideia do que se trata – especialmente por quem não faz a mínima ideia do que se trata, já que parar para pensar no assunto é dar tempo ao inimigo –, enfim, representa o “outro lado” numa guerra santa cuja urgência só fracos, pusilânimes e traidores questionam.
Embora a estridência em torno do assunto venha sendo mais associada a correntes neopentecostais, a palavra de guerra “ideologia de gênero” foi lançada na consciência global pelo papa Francisco, em sua audiência geral de 15 de fevereiro de 2015, onde se referiu à “teoria de gênero” que, segundo ele, “busca cancelar as diferenças sexuais” entre homem e mulher.
(Um adendo: a experiência milenar da sede romana em criar espantalhos retóricos e usá-los como base para histerias coletivas não deve ser subestimada: de “albigense” a “abortista”, passando por “bruxa” e “maçom”, o catálogo é amplo e diverso.)
Este espantalho específico, já rebatizado de “ideologia”, ressurge num documento do Sínodo dos Bispos de outubro do mesmo ano, onde lemos que a tal ideologia “nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher”, e “apresenta uma sociedade sem diferenças de sexo, esvaziando a base antropológica da família”, levando a “projetos educativos e a orientações legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher”. Os bispos escrevem que “sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender), podem-se distinguir, mas não separar”. O pontífice ainda retomaria o assunto em sua exortação apostólica pós-sinodal, Amoris Lætitia.
Mas, afinal, qual o – perdão por misturar as mitologias – pomo da discórdia? Mesmo o documento do sínodo reconhece que a distinção entre sexo biológico e gênero é possível. Em linhas gerais, como explicaram os cientistas que descobriram uma espécie de peixe onde a fêmea tem pênis e penetra o macho (ganhando um Prêmio IgNobel por seu achado), sexo biológico pode ser definido pelo tamanho do gameta: quem tem óvulo (gameta maior) é a fêmea, quem tem o espermatozoide (gameta menor) é o macho. Em termos mais gerais ainda, a fêmea é quem engravida e/ou bota os ovos, embora mesmo aqui pareça haver exceções.
Já gênero é o nome dado ao conjunto de comportamentos, papeis e expectativas sociais associados ao sexo biológico. Como o povo de Humanas gosta de dizer, gênero é uma questão de performance, relacionada ao sexo. Imagino que ninguém em sã consciência vá negar que muito dessa performance é contingente e depende do momento histórico e das condições da sociedade.
Em 1854, a revista médica britânica The Lancet condenava um livro pioneiro de educação sexual por “dar, de modo desavergonhado, às damas da Inglaterra desenhos da vagina, do útero, dos espermatozoides”. Em 1857, a mesma augusta publicação se opunha à admissão de mulheres em escolas de medicina, e punha em dúvida a existência de mulheres “honestas e mentalmente sãs que acreditem que a medicina é sua missão”.
Ainda hoje, há quem acredite que a “performance de gênero” masculina inclui o chamado homicídio por honra – quando a mulher é morta por “desonrar” a família. E se o papel de gênero masculino no Ocidente inclui casar-se, gerar filhos e usar calças, por que o Vaticano insiste em celibato e os padres tradicionalistas, em usar batina?
Enfim, nem os bispos e nem o papa parecem rejeitar a ideia de que há contextos em que é proveitoso distinguir “gênero” de “sexo”. A depreender do que se lê nos documentos oficiais – e do modo como eles são filtrados e citados pelo vulgo – a “ideologia de gênero” dos histéricos seria a ideia de que o gênero pode ser “radicalmente” descolado do sexo. Para tudo há limite, bradam os herdeiros de Pedro: citando o Sínodo, as coisas podem ser “distintas”, mas não “separadas”.
Essa sutileza, entre “distinguir” conceitos e “separar” conceitos, mereceria uma análise à parte, mas supondo que ela não represente uma abstrusa vacuidade retórica, a ideia aqui é a de que é factualmente errado e moralmente ruim supor que a “performance de gênero” – o modo de “ser homem” ou “ser mulher” de cada um – possa existir de maneira independente do sexo biológico. De que existe uma “essência masculina” da qual os produtores de espermatozoides não podem, nem devem, fugir, e uma “essência feminina” à qual as produtoras de óvulos também estariam presas, pela moral e pela biologia. “Ideologia de gênero”, então, seria a doutrina de que esse resíduo não existe.
Há, aparentemente, três questões que poderiam ser discutidas aqui: a primeira é se essa doutrina existe, no sentido de haver gente que realmente a propõe, propaga e gostaria de ensiná-la às nossas criancinhas. A segunda é se ela está certa ou errada. A terceira, se ela está errada, qual exatamente o resíduo – o que, na performance de gênero, é inseparável do tamanho do gameta que se produz?
Digo “aparentemente” porque, para os os histéricos da “ideologia gênero”, as respostas estão dadas a priori: sim, a doutrina existe, sim, estão tentando impô-la nas escolas, sim, ela está errada e, qual o resíduo? Simples: tudo. “Ser homem” é o que a norma social ou a mitologia a que eles estão acostumados diz; “ser mulher”, o mesmo.
Voltando a Amoris Lætitia, Francisco diz sobre as mulheres: “As suas capacidades especificamente femininas – em particular a maternidade – conferem-lhe também deveres, já que o seu ser mulher implica também uma missão peculiar nesta terra, que a sociedade deve proteger e preservar para bem de todos”.
Há de se dar ao papa o mérito de tentar fazer média com o feminismo, mas o resultado é pouco convincente: “O sentimento de ser órfãos, que hoje experimentam muitas crianças e jovens, é mais profundo do que pensamos. Hoje reconhecemos como plenamente legítimo, e até desejável, que as mulheres queiram estudar, trabalhar, desenvolver as suas capacidades e ter objetivos pessoais. Mas (…) não podemos ignorar a necessidade que as crianças têm da presença materna, especialmente nos primeiros meses de vida. A realidade é que ‘a mulher apresenta-se diante do homem como mãe, sujeito da nova vida humana, que nela é concebida e se desenvolve, e dela nasce para o mundo’ ”.
Ou seja, para o histérico da ideologia de gênero, mulher é mãe, primeiro, e qualquer outra coisa, depois, se der tempo, e olhe lá. Hoje, ele é o herdeiro moral e intelectual do médico que achava absurdo uma mulher querer estudar medicina em 1857. O que esses caras estão discutindo a sério não são, digamos, os efeitos da exposição a testosterona no útero sobre a inteligência espacial. Eles até podem fingir algum interesse nisso, como uma espécie de flanco retórico para o argumento de que existe uma “natureza masculina” essencial, mas seu ponto não é esse: é o de que comportamento homossexuais são moralmente errados e aberrantes e de que mulher feliz é a que fica em casa cuidando dos filhos.
Para essas pessoas, “ensinar ideologia de gênero” nas escolas é insinuar que essas coisas talvez não sejam verdade; que fazer bullying com o coleguinha que não gosta de futebol é errado; que uma menina sentir desejo por outra menina (ou um menino, por outro menino) não vai mandar ninguém para o inferno.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.