Yuri Vieira parece herdar instrumentos importantes de uma tradição de comicidade da literatura brasileira.
É desconcertante solicitar ao funcionário da livraria um exemplar de A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande. A experiência faceciosa já se inicia desde então, quando o próprio leitor se vê de repente partícipe do humor de Yuri Vieira.
O escritor — que também é cineasta premiado — apresenta nesse volume de contos uma expressiva evolução desde a sua estreia com A tragicomédia acadêmica: contos imediatos do terceiro grau. Suas sentenças concertam mais concisão e sonoridade; o arcabouço complexo de recursos literários, que desde sempre engendrou suas narrativas, agora alcança homogeneidade; seu humor e suas intenções, quando não propositalmente explícitos, submergem de maneira acabada e segura nas entrelinhas.
Conquanto seja uma coleção de contos — e eles subsistam independentemente —, perpassa, em quase todos, o personagem de nome risível que lhe oferece unidade e título: o advogado João Pinto Grande. Sua presença contínua, porém, nem sempre faz dele um protagonista nas urdiduras. O advogado é em certa medida um herói discreto e bonachão, caso venhamos a utilizar o conceito de herói no sentido romântico: aquele que demonstra como um homem poderia ser; no caso específico, um homem que não separa a sua inteligência de um rigoroso idealismo moral. A unidade entre as diferentes estórias, logo, dá-se também pelo coincidente recorte no tempo — condição importantíssima, devido à atualidade das questões e dos elementos envolvidos (do feminismo aos bitcoins).
Uma característica especialmente distintiva de A sábia ingenuidade…, para além do humor cômico, é a presença de personagens que carregam opiniões robustas a respeito de polêmicas nada aconselháveis, o que exige, ao mesmo tempo, uma demonstração de domínio técnico-literário na composição — bem sucedido, é preciso dizer — e um profundo interesse intelectual pelos problemas contemporâneos, incluindo a variedade de posicionamentos. A respeito das supostas opiniões do próprio Yuri, poderíamos assinalar a fala do Dr. Pinto Grande no conto “O pedinte do metrô”, ao divagar sobre Deus: “Por que um artista ou escritor pode se colocar dentro de sua obra, representando-se mediante um personagem-avatar, e Deus não o poderia?”. Algo semelhante já havia sido observado pelo personagem Paulo César, no conto “A teologia da maconha”.
No entanto, Yuri Vieira abala de maneira intermitente as impressões mais cômodas do leitor. No conto “Amarás ao teu vizinho”, por exemplo, o advogado de nome jocoso pensa consigo mesmo, ao se lembrar de uma conversa sobre Herman Hesse: “Ora, escritores de ficção são artistas, não necessariamente bons intelectuais, filósofos ou guias espirituais”. Ainda sobre essa consciente confusão de perspectivas, concebida com zelo em todo o livro, é necessário notar que o próprio contista é personagem no conto de abertura — por consequência, o único deles a ser narrado em primeira pessoa. Os pontos de vista, a despeito, são expostos ali de modo a largar o leitor no campo das incertezas, tanto mais quando de súbito rebentam elementos fantásticos em cena — mecanismo já consolidado no estilo de Yuri.
A palavra consciência pode ser talvez a que melhor se associe à feitura de A sábia ingenuidade do Dr. João Pinto Grande, uma vez que seja preciso uma percepção muito clara das próprias faculdades para realizar com arte esse trabalho. Sobretudo no risco, todo gesto mais ingênuo seria fatalmente salientado. Yuri Vieira parece então herdar instrumentos importantes de uma tradição de comicidade da literatura brasileira, seja na descrição de detalhes falsamente dispensáveis — que o aproxima de Nelson Rodrigues —, seja no confronto heteróclito e burlesco de figuras morais — ao estilo machadiano. Quando emprega novidade nesses pertences, ganha lugar entre os mais talentosos (e engraçados) prosadores da atualidade.
Daniel Gil
Poeta e ensaísta. É secretário executivo da UFRJ, e conclui seu doutorado em literatura brasileira na mesma instituição.
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