Julian Barnes posiciona a obra acima do artista.
“Beauty is truth, truth beauty,—that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.”
John Keats
“I have always believed that beauty is beauty, truth truth, that is not all ye know on earth nor all ye need to know.”
Philip Larkin
Do grupo que protagonizou da cena literária inglesa dos anos 80 e 90, Julian Barnes foi quem melhor dominou o gênero ensaístico. Martin Amis, na condição quase caricatural de enfant terrible daquela geração, alternou momentos espirituosos e enfadonhos em sua produção jornalística. Ian McEwan possui obra limitada fora da ficção, enquanto a de Salman Rushdie foi ofuscada por circunstâncias políticas. Christopher Hitchens era um intelectual rigoroso, dono de texto primoroso e retórica destruidora – o que talvez o impedisse de flanar pelas hipóteses e incertezas do estilo criado por Montaigne.
Mas Barnes trilhou esse caminho com maestria. Inclusive em seus romances: ou o que seriam O papagaio de Flaubert e Arthur & George senão ensaios sobre personalidades reais e fatos históricos, ainda que envernizados em algo de ficção? Foi cronista de Londres para a New Yorker e de sua própria cozinha, sem saber fritar um ovo, para o Guardian. Escreveu digressões, anedotas e opiniões com inteligência, graça e um tom que alterna leve superioridade e autodepreciação.
Mantendo um olho aberto é uma coletânea de ensaios sobre arte, com enfoque em franceses do período entre 1850 e 1920. Mas mais do que isso, é um livro sobre a necessidade humana de explicar coisas, formar opiniões e discutir – ou seja, de sermos ensaístas do nosso entorno. Se Flaubert acreditava que as grandes pinturas não exigiam quaisquer palavras de explicação, Barnes criou uma obra que tenta, senão corrigir, demonstrar que seu grande mestre foi hipócrita ao fazer tal julgamento.
Olhar informado e olhar ignorante
Percorre nos textos uma indagação comum a quem emite opiniões sobre arte: qual a diferença entre um olho ignorante e um olho informado? Há alguma vantagem em analisar determinada peça conhecendo previamente seu contexto? A ignorância pode ser uma bênção de sensibilidade e pureza?
No primeiro capítulo do livro, que já havia sido publicado em Uma história do mundo em 10½ capítulos, Barnes escrutina Cena de naufrágio (abaixo), obra-prima de Théodore Géricault. Trata-se do retrato de uma tragédia marítima que chocou a sociedade francesa no início do século XIX, quando sobreviventes da colisão de uma embarcação contra um recife ficaram à deriva em uma pequena balsa e precisaram recorrer a canibalismo e assassinatos em massa para a própria salvação.
Só que a pintura não mostra nada disso. Não está representado ali o momento da batida, ou de algum motim da balsa dos náufragos, tampouco exato instante do resgate. Vemos, isso sim, uma tela cheia de figuras de costas, muito mais musculosas e saudáveis do que se imaginaria. Vemos dinamismo e força; não há ferimentos ou cicatrizes, nem fadiga e doença. O poder e a beleza que a tela emana são dissonantes em relação ao evento real. O que aconteceu?
Pintar é fazer escolhas e escolher perspectivas, e o que Barnes ressalta é que os olhos informados de seu primeiro público – franceses que conheciam todos os detalhes e escândalos do caso – foram triunfantemente derrotados pelo ignorante olho do tempo, que “dissolve a história em forma, cor, emoção”. Cena de naufrágio, dois séculos depois dos fatos que levaram a sua criação, é uma dessas pinturas que “sobrevive”, que “vivem para além de sua própria história”. “A religião decai, o ícone permanece; uma narrativa é esquecida, mas sua representação ainda magnetiza.”
Obra e biografia
Essa batalha constante entre realidade e arte se dá, também, na relação entre a biografia do artista e a sua obra. Eugène Delacroix era um “homem reservado que temia a paixão e valorizava acima de tudo a tranquilidade”, embora seus quadros falassem de “extravagância, paixão, violência, excesso”. A dedicação extrema de Cézanne ao ofício resultava em “destruição frequente de trabalhos insatisfatórios e necessidade de uma incorruptibilidade na vida, da qual a incorruptibilidade da obra dependia”. Era o oposto de Picasso, “público, político, afeito às câmeras e concupiscente” – ainda que o malaguenho pareça relativamente austero e elevado “em comparação com os mais ‘bem-sucedidos’ artistas do século XXI, atirando suas intermináveis versões da mesma ideia para bilionários que não entendem nada”.
A reflexão chega aos dias de hoje em um inspirado ensaio sobre Lucian Freud. De personalidade controladora, magnética e sombria, o pintor possuía uma relação difícil com mulheres. Teve inúmeros casos e incontáveis filhos – reconheceu catorze, mas pode ter tido duas vezes esse número. Foi um charmoso conquistador e um incorrigível infiel. Aos mais próximos, revelava uma sórdida inclinação à misoginia e à submissão feminina.
Ao conhecermos essas histórias, é natural que elas pareçam modificar o modo como os nus femininos de Freud devam ser lidos. Frias e implacáveis, as pinturas parecem mais de carne do que de mulheres; mostram expressões de inércia, passividade, quando não de aflição e pânico. É difícil não misturar vida e obra. “A biografia infecta outros quadros também, ou melhor, ajusta nossas leituras prévias deles.” Mas Barnes defende que o tempo dissolverá essa percepção, possivelmente tornando Freud o grande retratista do século XX.
A arte tende, mais cedo ou mais tarde, a se libertar da biografia. O que uma geração acha duro, ordinário, não artístico, frio, a outra considera uma visão fiel, até mesmo bela, da vida e de como ela deveria ser representada – ou melhor, intensificada.
Defesa do objeto
“Confiem na arte, não no artista; confiem na história, não no narrador. A arte lembra, o artista esquece.” Para fazer isso, Barnes estimula o leitor a “manter o olho aberto”. A efemeridade, a ansiedade e o excesso dos nossos tempos são venenos para a observação mais detida de qualquer obra. Basta ir a um museu ou exposição para perceber quão rápido os visitantes passam em frente a uma boa pintura: dez segundos, trinta? Dois minutos inteiros? E em uma exposição de trezentos itens, quais as chances de se chegar ao fim sem um excruciante sentimento de que não a aproveitamos tanto quanto poderíamos?
O olhar treinado e a habilidade textual de Barnes nos oferecem uma visão que combate a pressa tão própria da atualidade. Sua relação com as artes plásticas começou relativamente tarde, e o conhecimento foi adquirido de forma gradual – visitando museus durante viagens de lançamentos de seus livros e sessões de leitura. Mantendo um olho aberto traz descrições visuais ricas, com percepções atentas e inteligentes, como neste detalhe observado nas Execuções de Goya:
A postura do pelotão de fuzilamento é um elemento crucial: o tornozelo duro, o joelho travado, a perna de apoio atrás, posicionada no ângulo profissional correto. E essa postura ecoava a linha dos soldados napoleônicos: essas são as pernas dos opressores, pernas que pisam em protesto, cuja rigidez percorre o corpo até chegar à rigidez final do rifle.
Sobre as representações femininas de Degas, Barnes aponta que:
Suas bailarinas não são as sílfides e ninfas – delicadas, mas também suavemente pornográficas – que pintores homens anteriores tinham retratado. Elas são mulheres reais engajadas em duro trabalho físico, que suam e reclamam, contraem músculos e sangram nos dedos dos pés; mas que, mesmo em seu estado de exaustão no descanso (aquela pose de mãos na cintura, costas tensas, mal-posso-esperar-para-o-dia-terminar), indicam uma vigorosa vida física.
Da leitura dessas descrições, o que se sobressai é uma defesa íntegra do objeto e de nossa resposta viva a ele, para além de contextos e biografias. Para Julian Barnes, o que importa é se a obra interessa ao olhar, excita o cérebro, estimula a mente à reflexão e move o coração. E mais: em tempos de inócuas discussões sobre arte, inflamadas por recentes fatos ocorridos em exposições no Brasil, o escritor questiona – “Há um nível aparente de habilidade envolvida? Muita arte que está na moda incomoda apenas o olho e brevemente o cérebro, mas fracassa em cativar a mente e o coração”. E conclui:
Nós percorremos as grandes galerias, apreciativa ou desdenhosamente, segundo nosso conhecimento, nosso temperamento, o estado da nossa digestão e a moda da época, colocando este ou aquele quadro na lista dos nossos dez melhores, e permanecendo incorrigivelmente curiosos a respeito da vida privada deste ou daquele artista. Mas a arte em si continua a existir independentemente disso, acima de nossas cabeças, sólida e indiferente.
Tomás Adam
Jornalista e empresário.