Darren Aronofsky tem sido movido por um proselitismo inteiramente acrítico, agravado pela presunção de seus projetos.
1.
Quando, num artigo cultural, lemos que alguns críticos e espectadores consideraram Mother! como uma defesa da propriedade privada, percebemos, por fim, que é inegável o diagnóstico de que parte da intelligentsia ocidental moderna sofre profundamente da inclinação ao reducionismo, sendo as ideologias apenas um dos sintomas do mal. Quando do lançamento de Noé (2014), com seres de luz condenados à existência material em carapaças de pedras, Aronofksy não apenas saturava sua obra de símbolos e imagens gnósticas, mas também lançava-se uma grande reformulação gnóstica da narrativa bíblica do primeiro julgamento cósmico.
O primeiro ponto imprescindível de explicação antes de darmos continuidade a uma análise mais pormenorizada do filme Mother! é certamente a definição daquilo que julgamos a grande fonte de equívocos e presunção do filme, a saber, o gnosticismo. E não sua vertente mais fortemente mística, que não raro produziu obras-primas, esteticamente falando; trata-se, antes, de uma versão proselitista e panfletária, própria de Aronofsky. Desse modo, não se trata de uma acusação inquisitorial, e portanto pontual, da presença de uma heresia. Primeiramente, conforme veremos adiante, o gnosticismo não é uma simples opção (do grego hairesis, donde heresia) ou seguimento doutrinal, mas um sistema de crenças mais ou menos coerente, embora sincrético, que desde seus primórdios parasita o cristianismo. Dito de outro modo, e correndo o risco de apresentarmos uma definição sucinta ao ponto da caricatura, o gnosticismo é a negação e completa inversão de cada ponto doutrinário do cristianismo, inclusive absorvendo e transmutando alguns de seus elementos.
Em The Gnostic Religion, de Hans Jonas, uma das obras seminais sobre o assunto, o autor, apresentando um profundo estudo sobre as origens e vertentes gnósticas, define assim o problema da gnosis (o conhecimento) – o elemento fulcral e dinâmico do movimento:
Gnosis referia-se primordialmente ao conhecimento de Deus, e daquilo que dissemos acerca da transcendência radical da divindade, segue-se que “o conhecimento de Deus” é o conhecimento de algo naturalmente incognoscível e, portanto, não uma condição natural em si mesma. Seus objetos incluem tudo que pertence ao reino divino do ser, a saber, a ordem e a história dos mundos superiores, e aquilo que deve proceder disto, nomeadamente, a salvação do homem. Com objetos desse gênero, o conhecimento como ato mental é amplamente diferente da cognição racional da filosofia. Por um lado, está intimamente ligado com a experiência revelatória, de modo que a recepção da verdade, seja por meio de doutrina sagrada ou secreta, seja mediante a iluminação, substitui o argumento racional e a teoria (embora essa base extra-racional possa então fornecer o escopo para a especulação independente); por outro lado, sustentando o interesse para com os segredos da salvação, o “conhecimento” não é apenas informação teórica sobre certas coisas, mas é, em si mesmo, como que uma modificação da condição humana, encarregada da realização de determinada função na busca da salvação.
Esse conhecimento – gnosis – traz consigo a percepção da efemeridade e da condição do mundo como mero simulacro, de maneira que este é percebido como o material para transformação (o que pressupõe uma maleabilidade quase infinita da matéria), ou como domínio essencialmente hostil ao homem (o que pressupõe que o homem é um ente deslocado e por isso desamparado no cosmo). Muitos conhecem o estudo de Voegelin sobre o caráter gnóstico da modernidade e, por conseguinte, também dos movimentos de massas e totalitarismos. Para o filósofo austríaco, o marxismo, por exemplo, com sua escatologia otimista que se fundamenta na manipulação infindável do mundo por parte do homem, é um dos maiores, se não o maior, movimento gnóstico moderno.
O ponto central, todavia, é que o gnosticismo, deixando seu caráter simplesmente doutrinário, torna-se via de rega um modo de experiência no mundo, na qual, especificamente, o ser humano se vê acometido de um sentimento de exílio e alienação: “Não menos demonizado é a dimensão temporal da existência cósmica da vida, que também é representada como uma ordem de poderes semipessoais (e.g. os ‘Éons’). Sua qualidade, tal como a do espaço do mundo, reflete a experiência fundamental de alienação e exílio”.
Desse modo, sendo o cosmo o espaço por excelência da hostilidade e desamparo (cujo ápice é o horror cósmico de Lovecraft), faz-se necessário superar ou moldar o mundo mediante a ascese e a autosoteria (a salvação de si e por si mesmo). Sendo assim, o gnosticismo, mais do que uma heresia ou mais amplamente um sistema herético, é uma experiência cósmica[1]. Não é um equívoco, pois, a afirmação de que a doutrina gnóstica é efetivamente antípoda ao cristianismo, em praticamente todos seus artigos, especialmente a doutrina da encarnação. Afinal, se a matéria é má, já que criada por um demiurgo maldito, torna-se impensável, quando não impossível, que a Divindade assuma a condição material, ou que sofra morte cruenta em prol de homens desprovidos da graça. Este ponto é crucial para a compreensão da falha no coração (literalmente) e ritmo do filme de Aronofsky.
2.
Em Anticristo (2009), Lars von Trier expõe o niilismo mais rasteiro, aliado com não pequena dose de misoginia, em sua defesa da tese, para ele aparentemente inovadora, de que “a natureza é o templo do Diabo”. Naquele que talvez seja uma das cenas mais embaraçosas da história do cinema, uma raposa, tendo devorado sua cria, move suas fauces para ensinar-nos, como um profeta do reino animal, que “o caos reina”. Aronofsky aparentemente superou seu mestre, já que a natureza – a “mãe” do título – não se contentou com sua modesta condição de santuário demoníaco, porém tornou-se um palco giratório, uma espécie de roda de Ixíon em que um deus demente se compraz na própria permissibilidade e negligência inveteradas.
Desde Noé, quando fomos apresentados a um deus que se agradava de sacrifícios de infantes[2], mais Moloque do que Javé, Aronofsky tem pavimentado o caminho para sua consagração como o acólito mais iluminado da verdade. Todavia, como Mother! revela, o diretor norte-americano, abdicando de toda sutileza e ambiguidade, tem sido movido por um proselitismo inteiramente acrítico, que ainda é agravado pela presunção de seus projetos.
Para valermo-nos da linguagem junguiana, Darren Aronofsky fez de si mesmo o arquétipo do artista que milita em prol do gnosticismo. O mesmo furor e reducionismo dos fanáticos manifestam-se na uni-dimensionalidade de sua narrativa. Se a alegoria é, de fato, a transposição de conceitos em imagens, então estamos sem dúvida perante esse tropo, embora sua consecução seja das mais simplórias. Talvez hybris seja o mais preciso diagnóstico para as pretensões do diretor; no entanto a doença de sua alma, que se evidencia na película, ultrapassa o simples excesso – e consequentemente também as virtudes e vícios clássicos –, ao ponto de tornar-se uma revolta prometéica contra o Criador, uma insurreição adâmica contra a própria estrutura da realidade. Na adolescência, momento em que a realidade confronta e molda os desejos do homem, esse sentimento se traduz em generalização, iconoclastia e desobediência. Porém Aronofsky, o puer aeternus, crê que nos brinda com um novo conhecimento (gnosis) quando nos apresenta algo que dificilmente perdoaríamos nos diários e notas pessoais de uma mente juvenil.
Primeiramente, estamos perante um deus demente (Javier Bardem), que se compraz na própria limitação e vacuidade. Após a composição de um majestoso poema, vê-se sem inspiração, e portanto poeticamente estéril, até o instante em que recebe a visita inesperada de um homem (Ed Harris), com quem se alegra e praticamente rejuvenesce. Depois de uma noite de bebedeira, o visitante se sente mal e é amparado por esse “deus”. Em seguida, a câmera foca numa fenda (ferida) na região das costelas do homem. E daí, a percepção menos calejada já depreende que se trata de Adão, ou uma alegoria quase caricatural dele. No dia seguinte, como se dá na narrativa canônica, sua esposa (logo, Eva) também chega à casa, com um comportamento marcadamente lascivo. Há aqui não sei se uma ambiguidade ou mera confusão: a personagem de Michelle Pfeiffer é mais Lilith do que Eva, propriamente.
Mais à frente, quando o casal menciona seus dois filhos, concluímos, a partir dessa “premissa menor”, que Caim[3] e Abel surgirão dentro em pouco. E, conhecendo a narrativa bíblica, o irmão mais velho assassinará o irmão mais novo. Portanto, uma vez que temos de antemão o roteiro, a expectativa é substituída pela impaciência.
Movidos por uma curiosidade irrefreável, os nossos Adão e Eva invadem a câmara sagrada, o escritório de criação do deus-poeta, que até então era interdito a todos. Ali a divindade guardava e admirava um cristal semelhante a um coração – uma joia encontrada em meios às cinzas candentes de um incêndio que anteriormente destruíra a casa. Impressionados pela beleza da pedra, e ignorando as advertências da Mãe, o casal derruba o objeto, que se despedaça por inteiro. O sentido é evidente: a Queda se dá com a desobediência, e a fragmentação do cristal, que nada mais é do que o próprio coração da Natureza, é a consequência imediata desse pecado original.
Ao passo que na narrativa bíblica a corrupção do mundo natural é uma consequência do erro primordial, na obra de Aronofsky é a causa. Isto é, para ele, o pecado original – e por isso o pecado “imperdoável” – é a violação da Natureza. É quase desnecessário dizer que, nessa alegoria gnóstica, a própria existência humana é uma malignidade em si mesma, já que conspurca e corrompe o próprio lar.
Avançando nessa paródia[4], analisemos algumas cenas significativas: o sangue de Abel literalmente impregna-se em algumas tábuas da casa, como sinal, mais do que evidente, de que habitamos num campo de sangue. O filme assim prossegue: somos conduzidos pelas mãos nessa formação catequética ministrada pelo diretor. Num certo momento, por exemplo, os canos de uma pia se rompem, inundando toda a casa – e, em defesa de Aronofsky, digamos que, em Noé, ele foi mais feliz na representação do dilúvio do que nesse filme em questão.
O deus de Aronofsky é mais um Sísifo condenado a um eterno ciclo de criação, queda e destruição, embora ele esteja sujeito a essa sequência sufocante de atos não por um destino (fatum) superior, mas por sua própria sede de lisonjas. E assim temos uma espécie de coquetismo divino, que se gaba dos louvores e bajulações, e, ao mesmo tempo, uma demência demiúrgica, que é incapaz de instaurar uma vindicação da própria justiça, ou de calcular, numa balança moral, se o preço da lisonja compensa a extensão e intensificação da maldade.
Vivenciamos, no filme, ao menos o espaço de três ciclos cósmicos (os Eóns supracitados) e, por conseguinte, percebemos que estamos perante um deus falho que se lança infinita e incansavelmente ao trabalho de criação a fim de preencher sua própria vacuidade interna. Entretanto, é curioso que aqueles que assistem a esse drama, os meros mortais, sejam capazes de transcender esses ciclos, ainda que somente no domínio do pensamento, e assim também percebam a monstruosidade desses ciclos, ao passo que essa paródia de pantokrator (todo-poderoso), além de inconsciente e ignorante disso, permanece extasiado na sua própria insuficiência.
Ainda mais problemático é o fato de que nós, o “câncer do planeta” (como econaturalistas radicais se expressam), ficamos condoídos com o sofrimento e as sevícias literais contra o corpo da Mãe. E aqui Aronofsky se manifesta como o típico iluminado presunçoso: somente ele foge à maldade, cegueira e alienação humana, e percebe com clareza que nossa própria existência configura-se como uma terrível agressão contra a Natureza. Com essa percepção, o diretor está acima não apenas dos demais homens, mas também do seu próprio “deus”, já que, diferentemente dele, é capaz de misericórdia para com a Mãe. Talvez, neste aspecto específico, faça sentido a crítica de Feuerbach de que Deus foi criado à imagem do homem, sendo apenas uma projeção de nossos melhores ideais e desejos; afinal, o deus de Aronofsky é simplesmente uma ampliação megalomaníaca do próprio diretor: presunçoso, afetado e sedento por aclamação.
E um dos pontos mais embaraçoso se dá quando o personagem de Bardem, respondendo à pergunta da Mãe sobre quem ele é, exclama na típica moral explicativa das fábulas: “Eu sou o que sou” – não deixando espaço algum para quaisquer outras interpretações que não a mística ou teológica.
3.
Por fim, a brecha ou falha visível desse cânone gnóstico se dá no momento em que o Filho, fruto da Mãe e do deus gnóstico, é aclamado por uma multidão furiosa que, na sua histeria mística, desloca os membros e pescoço da criança, para em seguida alimentarem-se de sua carne. A lição básica aqui é o abandono do Filho por parte do Pai, o partir do corpo de Cristo nas divisões teológicas da igreja, e a Eucaristia ou Santa Ceia como um retorno ao banquete totêmico mais primevo.
Dissemos anteriormente, que a encarnação é uma doutrina particularmente incômodo ao sistema gnóstico, não somente pelo fato de que ela pressupõe e advoga a bondade da matéria (das coisas criadas), bem como a compatibilidade das naturezas humana e divina, mas também porque é uma evidência corporificada do amor e cuidado divinos. Se para o gnóstico o homem ascende à divindade suprema (o pleroma) por meio do esforço autônomo e ascético, na encarnação o próprio Deus vem e manifesta-se ao homem. Dito de outro modo, e independentemente de nossas crenças, a encarnação é uma evidência do amor de Deus e a participação voluntária de Deus na ordem cósmica e no âmbito do sofrimento humano.
À vista disto, é possível uma compreensão mais profunda de uma frase de Karen Blixen, presente num de seus contos: as mulheres foram capazes de dominar sobre o Cristo somente ao representá-lo eternamente como uma criança de colo, dependente da Virgem.[5] Isto é, no conto de Blixen, nem as dominadoras derradeiras da natureza – as mulheres – poderiam exercer sua influência ou adestrar o Christus Victor, o Cristo Vitorioso, senão por meio de sua representação como a criança que ainda se nutre do leite de sua mãe. E é precisamente isto que impede a consecução do projeto de Aronofsky (a sua tentativa de uma escritura gnóstica), pois, com o intuito de desviar-se do nó górdio da encarnação[6], ele recorre à fragilização ou infantilização do Cristo.
Assim, neste ponto Aronofsky é visivelmente inferior a todos os projetos gnósticos anteriores: o docetismo, por exemplo, negava a encarnação (afirmando que o corpo de Cristo era apenas uma aparência ou ilusão), mas jamais a maturidade de Cristo. Pelo contrário, todas as correntes gnósticas entendiam Cristo como exemplo ou paradigma de maturidade e plenitude humanas. De maneira que, para eles, Cristo evidenciava a possibilidade de deificação do indivíduo humano.
O gnóstico Marcião também iniciou um projeto de cânone gnóstico, e selecionou a dedo determinadas cartas de Paulo e o Evangelho de João, ignorando aqueles livros que feriam sua sensibilidade, na medida em que tratavam da corporalidade ou do sofrimento do Cristo. Marcião rejeitou as passagens que pudessem comprometer suas escrituras, pois tinha consciência de que a encarnação (e os relatos que atestavam a condição humana assumida por Cristo) seria um elemento inteiramente refratário à sua cosmovisão gnóstica. Aronofsky, porém, toma sobre si uma tarefa maior do que suas possibilidades, e, inebriado por sua presunção, demole seu próprio edifício narrativo: o centro ou coração do cânone, isto é, a encarnação, esquiva-se à mímesis que ele conduzira ordenadamente até então.
É por isso que ele despacha o mais rápido e grotescamente com uma sequência de atos viscerais e repulsivos. Portanto, o que no cânone bíblico é o ponto de contato entre Deus e humanidade, no cânone de Aronofsky é marcado por uma terrível incompletude, um abismo naquele espaço em que, de outro modo, deparar-nos-íamos com o coração.
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NOTAS
[1] Tenhamos em mente, ainda que a questão transcenda o escopo deste ensaio, que, para Voegelin, o “gnosticismo era consequentemente totalitário por natureza, visto que concedia aos gnósticos um sentido perceptivo de legitimidade moral para erradicarem qualquer coisa – ou pior: qualquer um” (David Van Heemst, Herman Dooyeweerd and Eric Voegelin: a comparative study). O autor também pontua algumas características da mentalidade gnóstica, que é perceptível, quando não patente, na obra de Aronofsky: “A experiência fundamental da era moderna é, portanto, uma revolta contra a experiência do universo divinamente ordenado”; e também “a crença de que uma mudança na ordem do ser reside no reino da ação humana – que o ato salvífico é possível por meio do próprio esforço humano”.
[2] Não esqueçamos ainda que a descendência de Caim (no caso, Lameque) destruía, numa insubmissão carnívora, alguns espécimes belíssimos que encontravam-se na arca, apenas para a saciar um apetite voraz.
[3] Quando Caim de fato aparece e fica com sua testa marcada por um ferimento oriundo da luta com o irmão, ele surge como um profeta, anunciando à Mãe o abandono de Deus. Por outras palavras, ele tenta convencê-la, com todo seu ardor emocional, de que ambos compartilham da negligência e desprezo eterno de Deus. Curiosamente havia no passado a seita dos cainistas, que celebravam Caim como o homem real por excelência, o grande arquétipo de nossa condição existencial: desamparados por Deus e condenados por ele a vagarmos ao leste do Éden.
[4] Utilizo o termo aqui sem nenhuma conotação pejorativa que porventura o hábito e o uso trouxeram consigo; antes, retomo o conceito original, isto é, o canto paralelo a outro canto.
[5] “However much greeted at the banks of the Styx by the indignation of his individual victims with flowing hair and naked breasts, Don Giovanni would have been acquitted by a board of women of my day, sitting in judgment on him, for the sake of his great faith in the idea of Woman. But they would have agreed with the masters of Oxford in condemning Shelley as an atheist; and they managed to master Christ himself only by representing him forever as an infant in arms, dependent upon the Virgin”.
[6] A encarnação é uma dificuldade insolúvel para o gnóstico, evidentemente.
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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