Em algum momento, a esquerda decidiu que suas pautas políticas são também imperativos morais absolutos.
Sabe aquele meme em que algumas pessoas estão numa sala de reuniões discutindo um problema, alguém levanta a mão, dá uma sugestão razoável e é “recompensado” sendo arremessado pela janela? Esta é a história da esquerda brasileira neste século, e de sua derrocada: porque a direita estava lá embaixo, na calçada, pronta para acolher os defenestrados.
Muitas dessas pessoas recusaram a acolhida, é verdade, ou a acataram apenas parcialmente, mas o impacto afetivo do descarte não deve ser subestimado; o travo na garganta que impediu Fernando Gabeira ou Ciro Gomes de manifestar apoio explícito a Haddad deveria estimular mais reflexão do que condenação, e o fato de isso não acontecer só evidencia ainda mais o problema.
Levando em conta que a estatura biográfica, ética e intelectual de muitos desses defenestrados – além de Gabeira, me ocorrem nomes como Cristovam Buarque, Marina Silva e o falecido Hélio Bicudo – é superior à de 99% da dos que ficaram (alguém realmente dá dois tostões por Lindbergh Farias?), a ascensão de uma figura como Jair Bolsonaro está longe de ser surpreendente.
Porque é difícil fugir da impressão de que o fiel da balança, nesta eleição, foi a massa dos defenestrados: dos que foram dormir se imaginando aliados de causas progressistas – igualdade de direitos para mulheres e homossexuais, por exemplo – e acordaram para descobrir que haviam sido redefinidos, à revelia, como inimigos. Ao menos em minha bolha particular, este é o perfil predominante entre os eleitores do PSL.
Essa autofagia, parece-me, tem duas causas, uma específica do Brasil e outra que afeta a esquerda em escala global. A brasileira atende pelo nome de lulismo. A construção da figura de Luiz Inácio Lula da Silva em um semideus infalível e inimputável não poderia ser feita sem a demonização de eventuais aliados, infelizmente dotados de um pingo de senso crítico, e sem deixar pilhas de cadáveres de honestidade intelectual pelo caminho.
Além disso, ao decidir fundir homem e projeto, o PT e a esquerda que o acompanha garantiram que os pés de barro de seu ídolo também teriam de suportar o peso de sua pauta.
Aqui chegamos ao problema global, que é de pauta e de atitude. A problemática de pauta é inevitável: muitas das ideias abraçadas pela esquerda são contraintuitivas. Há alguma literatura em psicologia que sugere que o conservadorismo é uma espécie de atitude mental default – o que não significa que ele esteja certo, mas que superá-lo requer mais trabalho mental do que mantê-lo.
É preciso, por exemplo, construir um argumento de que cotas raciais podem reduzir desigualdades e injustiças, e não estimulá-las, como o senso comum sugere. Enfiar o dedo na cara de quem levanta a questão e gritar “racista!”, por incrível que pareça, não é o melhor argumento. E lá se vai um aliado em potencial pela janela.
Eis o problema de atitude: em algum momento, por alguma razão, a esquerda decidiu que suas pautas políticas são também imperativos morais absolutos. Que seus diagnósticos sobre o que está errado com o mundo são verdades autoevidentes, questionadas apenas por vilões ou imbecis. Que o lugar de quem levanta a mão e faz perguntas é janela afora. E descobriu os prazeres solitários da santimônia e do farisaísmo.
Porque é óbvio que há uma emoção especial em dizer a um homem branco, cis, heterossexual que o lugar dele é calado e no fim da fila, e que mesmo estando desempregado há mais de um ano e vivendo de bicos ele ainda assim é um privilegiado, e se ele acha esquisito dois homens se beijando em público, seu lugar é na cadeia ou no hospício. E se ele contempla votar em Bolsonaro (ou Aécio Neves, ou José Serra, ou Marina Silva), ele é um fascista.
E então o cara, que talvez só estivesse tentando entender por que o mundo de hoje é tão diferente do mundo em que ele cresceu, por que os limites de ontem não valem mais e por que existem esses limites novos, dá de ombros e vai lá votar no Bolsonaro, mesmo. Mas, e daí? A emoção do indômito fariseu das esquerdas de “dizer a verdade na cara do poder” é sua própria recompensa. E Bolsonaro acaba eleito.
Em todo o planeta, a esquerda transformou sua atividade política – que, dado o caráter contraintuitivo de sua pauta, sempre foi uma batalha morro acima de argumentação, retórica e convencimento – numa espécie de masturbação moral. Que o mundo desmorone, desde que eu possa me sentir puro e vibrar com minha ira santa. E quando o mundo desmorona, o pessoal fica surpreso.
A confusão que consiste em imbuir estados cognitivos altamente abstratos – como crenças e opiniões sobre arte, religião ou política – com carga moral absoluta (o que torna uma pessoa boa ou má, elogiável ou desprezível, não é o que ela faz ou como se comporta, mas no que ela acredita) é uma das inúmeras merdas legadas ao mundo ocidental pelo cristianismo. Que a esquerda, ateia na origem, tenha assimilado esse erro tem lá sua ironia.
Superar o erro requer descer do pedestal moral e reaprender a arte do diálogo. Aceitar que pode existir dúvida legítima, mesmo a respeito de ideias sagradas. Que é preciso estar preparado para discutir não apenas políticas e resultados, mas também os princípios e pressupostos por trás de políticas e resultados. Que a ira é uma resposta adequada apenas numa minúscula minoria de casos.
Voltando especificamente ao Brasil: espero que todo o processo dos últimos anos, do fim melancólico do governo Dilma e até esta eleição, tenha mostrado à esquerda que não existe “jeitinho” antidemocrático ou parademocrático que ela resolva legitimar, por algum tipo de conveniência tática — seja impeachment por motivo fútil (tentado contra FHC), seja construção de base parlamentar via corrupção (mensalão), seja discurso de ódio (Lula e a “zelite”), seja desprezo pela justiça eleitoral (Lula, elegendo Dilma), seja demonização da mídia (“PIG”), seja alarmismo retórico (“fascismo” no PSDB) — que a direita não consiga cooptar, e usar melhor.
Cada vez que a esquerda brasileira flexibilizou as regras não-escritas do fair play democrático, a direita reagiu fazendo o mesmo, só que com maior efeito. A única chance de as pautas da esquerda terem uma chance é dentro das regras estritas da democracia, preservando-as e impondo-as pelo exemplo. Mesmo que isso exija menos masturbação, gritaria e atrapalhe na hora de aparecer na foto sem camisa, jogando pedra na “polícia dos fascistas”.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.