O estafeta do corrupto condenado é preferível ao apologista do torturador.
Em suas polêmicas contra a Igreja Católica, o jornalista britânico Christopher Hitchens gostava de lembrar que o único membro católico da cúpula do III Reich a ser formalmente excomungado foi Joseph Goebbels – mas não por cumplicidade no massacre de 6 milhões de seres humanos, e sim por ter se casado com uma mulher protestante. Quando contava essa história, Hitchens às vezes arrematava com a seguinte observação sarcástica: “Não se enganem: somos criteriosos!”
No segundo turno deste pleito presidencial, o brasileiro também terá de decidir onde estão seus critérios. E, exceto pelas minorias que veem vantagens objetivas num ou noutro candidato, quase todos nós teremos de decidir, como no caso dos responsáveis por excomungar Goebbels, mas não seus colegas de atrocidade, qual o pecado maior. Qual o mal menor. A posição deste artigo é de que o estafeta do corrupto condenado é preferível ao apologista do torturador.
Antes de mais nada – não nego que Dilma Rousseff tenha feito o pior governo desde a redemocratização, e talvez um dos piores da história republicana.
Ao contrário de todos os seus antecessores do ciclo democrático – Sarney, Collor/Itamar, FHC, Lula – ela recebeu o país em ordem e relativamente blindado contra choques externos. Tendo uma casa arrumada nas mãos, a primeira presidenta da história deste país logo se pôs a destruí-la, com denodo e firmeza, armada da letal combinação de boas intenções, soberba e incompetência.
Também não nego que os esquemas de corrupção desnudados pelo escândalo do Mensalão e pelas investigações da Lava Jato representam algo sui-generis na história brasileira. Dizer que o PT não inventou a corrupção é como dizer que Pablo Picasso não inventou a pintura ou que Alfred Hitchcock não inventou o filme de suspense. Todas são afirmações literalmente verdadeiras mas, como dizem os ingleses, beside the point.
Ao longo da maior parte da história brasileira, a corrupção foi uma atividade artesanal – seu beneficiário direto era um indivíduo, ou um clã. Com isso, havia uma fragmentação de propinas e oligarquias – quem viveu o governo FHC deve se lembrar os constantes embates entre Magalhães a Barbalhos, Sarneys e Geddéis, etc. A competição política, garantia da alternância no poder, era estimulada pela sensação de que não haveria tetas para todos.
No paradigma petista, o beneficiário imediato da corrupção passou a ser o partido: se poucos petistas enriqueceram individualmente, isso se deveu ao fato de que os ganhos do crime agora se destinavam não a pessoas ou famílias, mas à sustentação da estrutura partidária e à consolidação do tal “projeto de poder”. O que era artesanal e intuitivo tornou-se industrial, alvo de uma impiedosa racionalização.
Uma consequência disso foi a pacificação das oligarquias: de repente, Collors, Calheiros e Sarneys conviviam amistosamente, como as ovelhas e os leões que se deitam juntos na fábula bíblica. A alternância de poder não era mais necessária, porque haveria tetas para todos, por todo o sempre.
Afirmando tudo isso, no entanto, ainda insisto que, frente à escolha diante de nós – Haddad ou Bolsonaro – o PT representa o mal menor. Por um par de razões simples.
O erro fundamental do PT foi se esquecer de que, ao contrário da ferramenta altamente personalizada do artesão, que não se encaixa direito em outras mãos, uma máquina industrial pode ser operada por qualquer um.
Tendo montado o mecanismo e explicado seu funcionamento, o partido, com suas ideias mais malucas, defendidas por uma franja agressiva – por exemplo, de que fazer bullying religioso contra homossexuais é errado – tornou-se desnecessário. Ninguém precisa de um arquiteto depois da obra pronta. Se os erros crassos de Dilma Rousseff viabilizaram o impeachment, foi a tomada do controle do mecanismo pelos aliados da véspera que garantiu o desfecho.
Minha primeira razão, portanto, é a de que a máquina de roubar construída pelo PT está aí, está inteira e nenhum governante vai abrir mão dela, a menos que seja forçado. A migração de apoios do centro e do centrão, que até anteontem eram comensais na mesa do PT, rumo a Bolsonaro mostra que essas forças têm certeza de que nada será feito, no âmbito do Executivo, para parar a máquina leiteira.
Mas esta não é a principal razão. A principal razão se chama Brilhante Ustra, o covarde torturador que serve de “role model” para Jair Bolsonaro. “Mas o PT apoia Maduro e Fidel Castro”, dirá alguém. E Lula chamou Muamar Kadafi de irmão, e apoiou o ditador hereditário da Guiné Equatorial.
Sim, verdade. Mas uma coisa é, digamos, o presidente dos Estados Unidos elogiar a família real da Arábia Saudita, talvez um dos países que mais comete violações sistemáticas de direitos humanos em todo o mundo. Outra seria ele elogiar publicamente o autor de um massacre escolar ocorrido em solo americano.
Há uma linha entre civilização e barbárie, há uma diferença fundamental entre roubo e tortura, há uma distinção que precisa ser feita entre bravata e ameaça: se o demagogo diz o que a massa ignorante quer ouvir, mas sabe que não é possível ou desejável pôr essas ideias em prática, o fascista – ou o idiota – não só diz, como também faz tudo o que está a seu alcance para cumprir.
Contra todos os defeitos que mostrou ter na última década, entre o segundo governo Lula e o mandato e meio de Dilma, o PT conta com uma longa folha de serviços prestados à democracia brasileira; com uma base de apoios na sociedade que é diversa e complexa, incluindo muitos amantes das liberdades democráticas e da ética na política.
Além disso, se voltar a governar, terá de se esforçar para reconquistar a confiança da maioria, já informada sobre seus vícios e atenta para seu modo de agir.
O que existe no outro lado? Um militar aético e indisciplinado, que pensa que a demarcação de terras indígenas e a proteção do meio ambiente são entraves para a economia, que cultua torturadores responsáveis pelo sofrimento e morte de cidadãos brasileiros. Que acha graça na violência contra mulheres e homossexuais. Que provavelmente é despreparado o bastante para tentar pôr em prática as bravatas favoritas da ala fascista de sua base. E que, neste momento, é apoiado por toda a gente que gostaria de ver as coisas mudarem para que tudo continue – principalmente no que diz respeito ao acesso à corrupção – exatamente como está.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.