Os ataques aos democratas serão ferozes se as urnas comprovarem as pesquisas de opinião.
Caro Presidente Fernando Henrique Cardoso,
Li com interesse sua entrevista ao Estadão, e à primeira vista achei que fazia sentido sua posição partidária, que exigiria compromissos do PT, e não pessoal, em defesa da candidatura de Fernando Haddad. Mas o problema é que não estamos diante de uma mera luta partidária para governar o país, e por isso é preciso sim resgatar a dimensão humana e profundamente pessoal de nossas decisões e apoios. Você exige que não lhe deem lições de moral. Ora, o PT pode não ter o direito de o fazer, mas nós cidadãos brasileiros temos o direito de esperar de você uma orientação que é, acima de tudo, ética. Você é parte de uma geração que trombou com o golpe de 1964 já adulta, uma geração que se vai. E é em nome desta geração que pedimos que você se posicione de modo claro e que explique a nós e aos jovens por que é importante barrar a outra candidatura e o que ela representa. Declare seu voto como se estivessem ao seu lado Covas e Montoro, Ulysses e Dom Paulo. Declare seu voto não para influenciar essa eleição, cuja sorte já está lançada, mas para que tenhamos nas próximas décadas um documento, um testamento, uma herança que nos sirva de amuleto nos tempos sombrios que virão.
Esse novo governo será pior do que tudo o que já vimos. Será pior que o regime militar e que o Estado Novo. Deixemos de lado por ora as terminologias técnicas, pois não tem ainda nome o governo Trump. Totalitarismo é o nome que Arendt criou já em pleno pós-guerra, então deixemos as classificações para os historiadores do futuro. O que sabemos é que estamos tratando de governos sem metas de bem estar, agregação social, ou mesmo paz, esse bem tão essencial a bons governos antigos e modernos. O termo que está sendo recuperado é kakistocracia, o governo dos piores. Não vejo problema em usar uma metonímia, se referindo a esse governo com nomes de outros regimes kakistocráticos, como o nazismo ou o fascismo, especialmente dadas as semelhanças: a perseguição a minorias, o irracionalismo militante e a cizânia como política pública. Não se pode deixar de denunciar uma ameaça grave ao país pois ela não se enquadra perfeitamente nas ameaças que nos precederam.
Os ataques aos democratas serão ferozes se as urnas comprovarem as pesquisas de opinião. Não será a Lei Maria de Penha, de efeitos controversos, que será revogada; serão fechadas delegacias da mulher. As universidades não buscarão com o tal capitão a transparência e a produtividade que evitaram nos anos democráticos; haverá caça às bruxas – e mais aos democratas que aos socialistas, diga-se de passagem. Não haverá atrasos na demarcação de terras indígenas; haverá a sanção do genocídio. Por que tapar os ouvidos para reiteradas manifestações do candidato de apoio e incitação às mais variadas formas de abusos de direitos humanos, acopladas ao profundo e militante desconhecimento dos problemas econômicos mais básicos que afligem nosso país? Os anos que virão serão duros. O contexto internacional é propício para esses governos niilistas e apenas a articulação de um grande arco global de resistência pelos valores iluministas pode nos tirar de uma rota assustadora de violência e caos. É para essa audiência mais ampla que pedimos uma tomada de posição sua.
Explique a quem vai perder cargos, ter que sair do país, para quem vai resistir em favelas e aldeias, explique para quem vai ser censurado e, pior que isso, para quem vai ser isolado pelos próprios pares, como aconteceu no passado, explique a eles hoje por que é preciso sim defender a democracia e que seus sacrifícios não são em vão. Diga aos intelectuais que aderem contentes a esse projeto que é contrário a tudo o que queremos que eles estão errados: diga isso clara e eloquentemente, aponte-lhes as conseqüências éticas desse adesismo, retribuindo com isso o gesto generoso de seu amigo Mário Covas. Fale às mulheres, gays e negros que seu medo é legítimo, pois o pior do que está nos acontecendo hoje – já é sintoma de uma cultura totalitária – é a deslegitimação da crítica e a ridicularização do próprio medo, um sentimento por si só já paralisante e isolador.
Escreva em português, inglês e francês, mas sobretudo em português.
Minha geração não gerou líderes. Fernando Haddad não é um estadista, assim como Floriano Pesaro também não é o. São homens adultos que não saíram da sombra de líderes passados. Por razões várias, inclusive o machismo asfixiante dos partidos que não abriu espaço para as mulheres, hoje grandes médicas, pesquisadores, diretoras de empresas, não vieram dos grandes partidos grandes líderes e isso abriu os flancos para uma alternativa niilista e desagregadora. Isso é fato. Haddad não fará a articulação necessária para a vitória no segundo turno, seria lhe pedir demais. Não aguarde isso para fazer a coisa certa, que é apoiar um sujeito decente e esclarecido, pois isso ele é, para a presidência do Brasil. Ciro Gomes fugiu do país, esperando que essa presidência não dure os dois anos para uma nova eleição. Mas nós cientistas sociais sabemos que não existe ditadura com prazo de validade. Nós sabemos o poder corrosivo do arbítrio, que dissolve as instituições mais firmes de uma sociedade, com um misto de estímulo material, ameaça física, convencimento ideológico mas principalmente exploração dos instintos mais vis do ser humano, que vê no colapso institucional uma oportunidade para se vingar de desafetos e galgar postos no novo regime.
Lembre, humildemente, que não lhe dão espaço nos jornais todos os dias apenas por seus próprios e inegáveis méritos, mas por representar uma geração que se vai. Por incorporar na sua vida a trajetória de todo um povo que mergulhou e emergiu de uma ditadura. Não é ao presidente do honra do PSDB que os jornalistas se dirigem, mas ao presidente em exercício de um ideal, o ideal democrático. Não aguarde salamaleques dos petistas, pois a maioria deles nem tem noção do buraco onde nos meteram e da importância de evitar o pior. Pense nos jovens que frequentam suas aulas, e reflita se por eles não valeria a pena subir no palanque de Fernando Haddad contra uma ameaça não a um projeto político específico, mas sim ao país enquanto nação.
Heloisa Pait
Professora da UNESP e membro do conselho consultivo da Open Knowledge Brasil. Colabora com o Digestivo Cultural, revista Panoramas e outros veículos.