Através do "clube do elogio mútuo", os grupos aceitam ou excluem os escritores, não por sua excelência, mas por quanto são edulcorados em bajulações.
“Para quê poetas em tempo de carestia?”
Friedrich Hölderlin, Pão e vinho
Para Thomas Merton[1], o terreno literário é permeado pelos “preconceitos da época”. Preconceito, não no sentido ideológico, mas de uma visão precária, parcial ou meramente formal. Neste sentido, o escritor é sempre prejudicado pela visão que tem de si mesmo e pelo preconceito que os grupos exercem sobre ele. Se não sabe quem é, ou ainda se tem uma visão distorcida de si mesmo, o escritor jamais se desenvolve. E não se trata de sucesso, mas de integridade: ele integra os elementos circunstanciais aos íntimos. Não há separação entre o eu e a persona do escritor. Ao contrário de O feijão e o sonho de Orígenes Lessa, o literato e vida profunda são uma só e mesma coisa.
No entanto, embora desenvolvendo e integrando vida e obra, como um Goethe em mangas de camisa, saltando valas e barrancos, ou brigando em botecos, o poeta terá que enfrentar sua própria circunstância, que são os grupos de escritores que, por não se desenvolverem, agrupam-se para regular e nivelar os escritores. Essas “igrejinhas”, como as chamava Dalton Trevisan, podem sufocar o desenvolvimento do escritor, sobretudo, quando atuam em conchavos políticos, por meio de acordos, leis de incetivo partidárias etc.
Através do “clube do elogio mútuo”, como dizia Rodrigo Júnior, o literato curitibano, perfeito exemplo de vítima dessas agremiações, a ponto de sua memória não figurar nem em uma reles placa de rua, os grupos aceitam ou excluem os escritores, não por sua excelência (a integridade de vida e obra), mas por quanto são edulcorados em bajulações. A falta de sinceridade alheia é um reflexo da falsificação dos indivíduos agremiados. Revistas literárias, diversas das publicadas pelo país, são documentos gritantes dessas relações[2]. Não é um caso de esnobismo estrábico — é descrição de fato. O próprio Goethe[3] reconhecia que, nas tertúlias de infâncias, as crianças estavam mais preocupadas em ser aplaudidas, por isso não havia fruição alheia: a explosão dos aplausos, na expressão pungente de Euclides da Cunha[4], seguia-se ao orgulho de ter escrito o melhor poema entre os pares, o que provavelmente era o sentimento de cada um. A generosidade não encontrava a gratidão. Mesmo no jardim da infância, a serpente sibila. O eu se afugenta na bolha de ar soprada pelo orgulho. Com peito inflado, ele nem desconfia que seu coração pulsa, longe da ubérrima e profícua terra. Sem o vinho da experiência profunda da vida e sem o pão da generosidade circunstancial, o poeta há de compor uma obra artificial. E um grupo de escritores, envelopados numa bolha de orgulho, lavrarão uma cultura falsa — jardim suspenso num abismo.
Desta forma, a cultura, esse enorme armazém de símbolos, que poderia sustentar as gerações, é substituído pelos palanques de debate público, onde a verdade é relativa, prevalecendo os argumentos dos sofistas, as regras do corpo como um corpo de regras…
A essa altura, a crítica especializada poderia me julgar exagerado, dizendo que reproduzo um lugar-comum do século 19 etc. Mas essa mesma crítica, que sufocou a crítica de rodapé, um dos últimos sinais de nossa cultura, é, ela mesma uma excrecência ornamental. Tudo o que ela reproduz, alheia ao coração das pessoas comuns, é uma tentativa de justificar teorias estrangeiras de prestígio político (como a escola de Frankfurt, estruturalismo, desconstrucionismo, etc.) à produção literária nacional. Eis estudantes tentando encontrar a luta de classes em As minas de prata, de José de Alencar, de 1865. Para eles, mais marxistas do que Marx, que reconhecia a prevalência das obras de arte sobre a economia, o capital é a ganância esvaziada de moral — é o Esteves sem metafísica, de Tabacaria de Pessoa[5]. Aí verem nas relações de mecenato de épocas anteriores ao capitalismo pela mesma lógica determinista socioeconômica. Não há de se estranhar que Cruz e Souza, um poeta de experiência profunda e trágica da vida expressa em poemas com Ressureição, sobre a loucura da esposa, e Vida obscura, sobre a sabedoria humilde de um companheiro de trabalho, seja apedrejado pela crítica ideológica que defende as minorias por ser um negro obcecado pela cor branca!
De qualquer modo, ao soprar as cascas das aparências eruditas da superfície, podemos afundar as mãos nesses grãos substanciais que, a despeito da teoria literária e da história da literatura, e mesmo de hermenêuticas modernas, como o freudismo e o marxismo, como já vira Sontag[6], são a busca espiritual do autor, como um símbolo de luta interior de integração da circunstância na alma. É essa a integralidade que faz do escritor sua própria obra. É o esforço de leitura interpretativa, por meio da intuição e imaginação da experiência profunda do autor, que faz com que as potências da semente lançada pelo escritor frutifiquem no terreno arado pela memória do leitor. O poema, enquanto ato de generosidade, traz parte de seu autor e sua circunstância. A gratidão por essa modesta oferta de excelência é cultivo e memória.
Falo em modelo de excelência e não de autoridade. Para os clássicos, Virgílio era o modelo de excelência de S. Agostinho, Dante e Camões. Mas o preconceito da época, ou seja, a recepção precária das gerações, talvez devido à formação das nações e consolidação das línguas, no papel educador dos retóricos, fez com que modelos de excelência tornarem-se modelos de autoridade. Como no Canto 4, de A peregrinação de Childe Harold, de Byron[7], ao refazer essa educação por meio da experiência profunda, não há como não encontrar na rebeldia infundada romântica um preconceito da época.
No mundo moderno e, o que é pior, num país culturalmente, mas não só, devastado como o nosso, onde as almas buscam o abrigo de gaiolas ideológicas, ser igual a si mesmo e vencer sobre os grupos é, portanto, o grande desafio para todos nós.
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NOTAS
[1] Cf. MERTON, T. Novas sementes de contemplação, 1961.
[2] Cf. SCHADECK, W. Flores sem raízes. Rio de Janeiro. ABL: Revista Brasileira, 2016.
[3] Cf. GOETHE, J. W. Poesia e Verdade, 1811.
[4] Cf. CUNHA, E. Os Sertões, 1902.
[5] Fernando Pessoa cogitou chamar o poema de “Marcha Da Derrota”.
[6] Cf. SONTAG, S. Contra a Interpretação, 1966.
[7] BYRON, L. A peregrinação de Childe Harold. Trad. J. P. Guimarães. Curitiba: Anticítera, 2015.
Wagner Schadeck
Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.
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