Ao contrário do imaginado, o microconto é mais difícil do que aparenta.
Tão importante quanto um bom começo é saber como acabar algo, e isso vale para a vida, para os relacionamentos e também para a literatura. Existem finais abruptos e cortantes, outros derramados e indecisos, e ainda existem alguns sensíveis enquanto outros são de uma secura que choca o leitor. Podemos dizer, portanto, que a literatura também é a arte de saber cortar a narrativa no momento exato, nem uma frase antes ou outra depois, e deixar o máximo de efeito residindo na imaginação do leitor, muito tempo depois que a história já se desvaneceu dentro de outras leituras posteriores.
No seu livro de estréia, Interrompidos, a escritora carioca Alê Motta leva ao paroxismo a arte de cortar uma história. Em 41 microcontos, ela levanta mundos narrativos com poucas e exíguas frases, para então cortar – com exímia precisão – a trajetória do conto assim que ele começava a voar. Ao mesmo tempo em que frustra o leitor que esperava uma história mais desenvolvida e com nuances psicológicas talvez mais aprofundadas, a decisão de acabar a narrativa de maneira repentina – interrompê-la, para fazer reminiscência ao título – permite uma gama de interpretações que surgem mais da imaginação do leitor a respeito das consequências do narrado do que das palavras escritas. Irresistível a tentação de pensar como a história continuou, e nesse misto de decepção e inconformidade reside o fascínio do livro. Cumpre ao leitor deixar a posição de passividade e interagir com o texto não-escrito, pensando em como a narrativa continuou ou qual nova história se originou a partir da última frase. Poderíamos dizer, assim, que os microcontos de Alê Motta encerram a sua parte física com a última frase, mas é ela quem começa a verdadeira história, uma que o leitor desenvolverá por conta própria e sem interferência do autor.
É um procedimento arriscado, e um escritor ou escritora sem habilidade técnica acabaria por gerar tamanha frustração com uma série de histórias interrompidas que os leitores poderiam se afastar do livro, considerando-o tão incompleto e insatisfatório quanto um coito interrompido. Para ficarmos em uma alusão sexual, os microcontos de “Interrompidos” podem se assemelhar a orgasmos precoces, mas o desenvolvimento que conduz até ele permite um gozo absoluto, e o que poderíamos considerar como precipitação acaba se transformando em intensidade narrativa, em sofreguidão.
Em Ficção brasileira contemporânea (2011), Karl Erik Schollhammer aborda essa preferência da literatura contemporânea pelas formas curtas do conto, destacando a essencialidade de manter um evento central que tensiona a narrativa: “A popularidade das formas curtas cria uma nova ponte ficcional entre o poema em prosa e a crônica e demonstra sua eficiência estética no modo como ressalta e pontua a vivência concreta. Isso se dá, sobretudo, pela força poética de um pequeno evento central que tensiona o conto, apresentado de maneira não circunstancial, cujos personagens atuam como elementos que sustentam a ação narrativa. É plausível ver, na recente popularidade do ‘microrrelato’, o reflexo da procura – por parte de leitores e escritores – de uma linguagem cuja matéria seja sensível, surpreendente e capaz de criar um efeito contundente de presença da realidade exposta.” Nos últimos tempos, com efeito, percebe-se uma maior apreciação do conto brevíssimo – ou microconto, que se opõe ao miniconto, em que a narrativa encontra-se concentrada no mínimo de elementos, em geral uma frase impregnada de significados, como o exemplo clássico atribuído erroneamente a Hemingway, “vende-se: sapatinhos de bebê, nunca usados” -, mas essa maior apreciação implica em um julgamento ainda mais severo quando os microcontos falham, seja na sua capacidade de transmitir o ponto de tensão da narrativa, seja no uso abusivo do clichê dentro de uma estrutura reduzida, seja na estereotipia do narrador ou dos personagens.
Ao contrário do imaginado, percebe-se assim que o microconto é mais difícil do que aparenta. Dentro de um espaço curto, concentra-se o máximo de tensão até descarregá-la em um final catártico; nesse meio tempo, é necessário desenvolver os rudimentos de personagens, de cenário, de conflito… Por tudo isto, os microcontos espelham como nunca a frase de Cortázar: ou eles ganham a “luta” por nocaute ou fracassam redondamente. Este é o desafio a que se propõe Alê Motta e, se algum leitor mais exigente entender que um ou alguns contos não tenham atingido seu objetivo, tal fato decorre mais da irregularidade característica de um livro repleto de microcontos fortes – alguns socos doem mais do que outros, mas são socos também – do que de uma eventual inabilidade da autora.
Com uma prosa seca, que utiliza poucas metáforas e adjetivos, os microcontos de Interrompidos revelam quase sempre personagens sem nome. A identidade deles não interessa, pois os dramas que vivenciam e os percalços que sofrem podem ser vivenciados por qualquer pessoa. Geralmente os microcontos são encerrados por um evento violento, que irrompe com fúria em meio à naturalidade do cotidiano, trazendo incerteza e desacomodação. Poderia existir uma previsibilidade das narrativas no momento em que quase todos os contos se encerram com violência, pois o leitor esperaria tal acontecimento (o que lhe tornaria óbvio e esperado), mas a escritora concentra o seu enfoque nem tanto no final, mas no desenvolvimento da história. Existe uma tendência de considerar que a melhor forma de “surpreender” ou “chocar” o leitor de um conto é colocar morte ou violência na parte final, mas Alê Motta – mesmo fazendo uso dessa prática em parte significativa dos microcontos de Interrompidos – escapa do clichê no momento em que usa o final como contraponto irônico ou como uma forma de resolução insuficiente para o conflito exposto na narrativa. Sim, existe violência e existe morte no mundo, mas as histórias continuam apesar delas, que são mais espasmos no tecido da realidade humana do que o encerramento de qualquer situação.
Os tempos modernos pedem narrativas urgentes, não tensas. Fazendo jus ao seu título, Interrompidos revela outra faceta atual da Humanidade: estamos imersos em um enorme conjunto de histórias interrompidas, cujo início desconhecemos e cujo final é mais uma construção mental que idealizamos para nos proporcionar alívio do que uma verdade. Só nas novelas da Globo existem capítulos finais, a vida é uma sucessão de episódios que surgem e desaparecem, em geral inconclusos. Seja o filho que nos conta algo que não prestamos atenção e cortamos antes que ele termine, seja a conversa de dois passageiros de um ônibus que cessa quando chegamos na parada, estamos cercados por histórias incompletas, as quais, mesmo nesse caráter de passagem por dentro da nossa vida, também possuem um mundo de possibilidades no seu interior. O grande dilema atual é como comunicar a nossa história para outra pessoa e fazê-la com que nos entenda, sem ruídos comunicacionais ou dificuldades de compreensão. Nesse sentido, os 41 microcontos de Interrompidos revelam uma possível solução: se estamos cercados por histórias incompletas, melhor assumir de uma vez o nosso caráter de transitoriedades ambulantes e considerarmos a inevitabilidade de que jamais encerraremos nossas histórias, estaremos sempre circulando imponderáveis até um ato de violência ressignificar o mundo em que vivemos.
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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