Resenha do novo livro de Paulo Henriques Britto.
Enganam muito as resumitivas setenta páginas de Nenhum mistério, o mais recente volume de poemas de Paulo Henriques Britto. Folheando-o, mas sem demorar-se, chega a parecer que é um livro possível de ser lido num instante. Trata-se de impressão ilusória, pois, à medida que se o avança, o livro vai como retardando o folhear para adiante. Essa desproporção é ainda mais sensível quanto mais se pode perceber a intensidade do despojamento obtido por Britto e, de outro lado, mais o leitor vai se deixando preencher pela leitura.
Essa alquimia por certo não é por ninguém garantida e depende de um acerto entre leitor e poeta. Deste último, não se pede mais que apenas atue diretamente em prol da compreensão alheia e, através de um código humano e comum, universalize seu discurso a ponto de causar empatia, ainda mais quando sua matéria preferencial é a subjetividade. Do primeiro, exige-se o esvaziamento de atribuições e que seja permeável à negociação proposta, sem o que a leitura de poesia torna-se um exame ao invés de um contato. O que acontece em Nenhum mistério é que o resultado dessa combinação proporciona uma identificação de outra espécie, na qual o vazio de um se combina ao vazio de outro. Ao final, resta um ser humano olhando para o outro, mutuamente desarmados.
Para além da extradição de qualquer traço hermético desde o título, os poemas de Nenhum mistério desde o seu princípio devolvem à experiência do eu o fardo incompreensível de viver. É daí que o leitor travará sua primeira identificação com a falta de sentido e a necessidade de aceitar as determinações fatais do inapreensível: o futuro, o não acontecido e o desbastamento da experiência. Logo no primeiro poema do livro, quando diz que ‘rememorar o não acontecido não dá em nada’, Britto sepulta a esperança lírica e apresenta o drama da (não ‘de’) consciência que virá ao longo das páginas a seguir.
Por vezes monástico e onipotente em relação ao seu próprio universo, do qual tudo sabe e tudo vê, o poeta vai ao extremo da anulação das expectativas. Sem, contudo, imergir no contemplativo ou na catalogação objetiva do mundo, é flagrante a tentativa de recolhimento por meio de um auto consolo, mas sem punição, o despojamento da culpa libertando o ser para o que ele é essencialmente, no confronto com o presente e a aceitação. Em Nenhum mistério, se há vestígios da impassividade racional com que Britto sempre parece ter tratado seus temas e motivos, aqui ele não hesita em esvaziar-se dessa potência. Afinal, vai se vendo mais do humano do que do poeta e essa simbiose composta por música, palavras e sentido realiza o trabalho do poeta-escultor que ele sempre tem sido: o artífice de uma poesia não residual e nem um pouco evasiva que mostra, mesmo com a dificuldade inerente ao foco poético, o alvo do que quer atingir. E atinge.
O rigor imperturbável de Britto, demonstrado aqui quando se debruça sobre si mesmo numa poesia extremamente mental e reflexiva, tem uma história que provém de um poeta e tradutor que emerge da própria maturidade e de um longo trabalho com a poesia. Tradutor de Elizabeth Bishop, Wallace Stevens, V. S. Naipul, Thomas Pynchon e de mais de uma centena de livros, em território nacional Britto não tem muitos companheiros na tradição de poesia mental (se fosse da cerebral seria mais fácil apontar a miríade de poetas cabralinos e pós-cabralinos). De fato, se fazer do pensamento objeto pode ser compreendida como uma exteriorização de motivos, a consciência, por outro lado, é um flerte interminável para com o despojamento do eu. Talvez na poesia de Dante Milano, formalista como a dele, ou mesmo nas experimentações zen de Orides Fontela, se possa ver algo da desértica jornada da poesia através da verdadeira solidão do pensamento, onde o poeta se depara com a eterna dificuldade expressiva em torno do eu e suas projeções no mundo objetivo em sua impermanência e constante desfazimento.
O desencanto mais notável em Nenhum mistério reside em que nenhum momento ele apela à memória e, no andaime de decomposições que a ordenação do tempo impõe a todos, os poemas são testemunhos nos quais qualquer um se percebe, porque esta é uma condição humana fundamental: a de que as perdas sempre se sobrepõem ao acúmulo. Nesse desbastamento e ao mesmo tempo no cumulativo de sua carreira, Paulo Henriques Britto esvazia a si mesmo e aos seus leitores e isso é um tanto quanto incomum na poesia contemporânea. E mesmo ao lermos um livro denso como o dele, ao final resultamos mais leves.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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