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Um olhar arendtiano para a política brasileira

por Renata Nagamine (22/10/2018)

Nossas alianças são de guerra e, portanto, construídas menos em função do que temos em comum do que para a destruição.

1.

Hannah Arendt é uma autora difícil de situar no campo das ideias. Pensadora considerada moderna, republicana, liberal e conservadora, ela compartilha de fragilidades de alguns liberais, entre as quais destaco duas: ela ignora o que os antropólogos chamam de marcadores sociais da diferença, ou seja, aspectos de nossa condição que se tornam fatores de diferenciação nas relações sociais, e retira as questões econômicas da política, considerando-as pré-políticas. Mas Arendt é, por outro lado, uma crítica do próprio liberalismo. Pensou a política dedicando pouca atenção ao Estado e era crítica do caráter abstrato de certas ideias liberais, como sua noção de sujeito e do direito. Por isso, tendo a ver Arendt como uma modernista relutante, na fórmula de Seyla Benhabib, que segue desafiando os poderes disciplinares dos campos: nem teórica política, filósofa moral ou socióloga, judia alemã com formação em teologia e filosofia, uma intelectual erudita e comprometida com a a liberdade e a sua própria autonomia.

Uma das características salientes de seu pensamento é que ele é informado pela experiência. Escritos importantes de Arendt são elaborações a partir de sua condição de apátrida refugiada do regime hitlerista na França e depois  radicada nos Estados Unidos a partir de 1941. Essa relação entre pensamento e experiência, e suas descrições ricas e densas são marcas do pensamento arendtiano. Elas tornaram sua obra muito profícua e podem ser úteis a quem se arrisca, hoje, a compreender o Brasil, um esforço que nos coloca pensando entre o passado, os olhos em um país que parece não existir mais, e o futuro, a contemplar um país que não existe ainda. Claro, essa impressão é pessoal e está relacionada com se ter alimentado ou não a ilusão de que o mundo, ou seja, todas as coisas e mesmo as instituições que nos cercam, fossem duradouras.

Minha lista dos escritos de Arendt para o momento compreende: (i) as Origens do Totalitarismo, publicadas em 1949 e depois em 1951, que tem me ajudado a pensar a ascensão de Jair Messias Bolsonaro; (ii) os capítulos de A condição humana sobre os espaços público, privado e social, bem como sobre o ator político; (iii) os ensaios “Mentira na política”, reunido em Crises da República, e “Filosofia e política”, em A dignidade da política, para pensar a relação entre fatos, verdade e opiniões, informação e desinformação; (iv) o artigo “Sobre a violência”, também reunido em Crises da República, que me ajuda a interpretar o voto em Bolsonaro em um contexto de crise de autoridade; (v) a parte do livro A vida do espírito dedicada ao pensar, para entender o anti-intelectualismo de parte dos eleitores do capitão. Nos parágrafos seguintes tentarei compartilhar, então, como esses escritos têm me feito companhia nos tempos sombrios em que vivemos.

2.

O que está acontecendo com o Brasil? O que colapsou? Essas são perguntas que comportam muitas respostas, todas necessariamente complexas; mas também são perguntas que eu e muitos com quem falo se colocam, por sentirem que o mundo está ruindo. Nesse momento, movimentos que desafiam a democracia liberal se fortalecem nacionalmente e começam a se articular em escala global. Sobram ameaças de poderes instituídos e forças sociais a direitos individuais, especialmente os de minorias étnicas, raciais, sexuais, religiosas ou políticas. Enquanto isso a política, pela qual passam as saídas das crises, parece espremida entre a ambição por obter controle sobre armamentos, reformas sociais e autoritarismos de diferentes tipos. Uma geração de pensadores, entre os quais Hannah Arendt, foi atirada em situação ainda mais dramática, em que compartilhar as experiências, costurar histórias e pensar com as categorias legadas pela tradição era ou impossível ou inútil.

Arendt pensou as sociedades de massa, a burocracia e a política das turbas. Pensou o papel do direito em relação ao fascismo, o nazismo e o comunismo, que definiram os rumos de sua vida. Ela tem uma contribuição a dar quando se trata de uma das discussões em torno das quais nossos embates têm se dado, que é a denominação do movimento de apoio a Bolsonaro, ou seus apoiadores mais ideológicos, de fascista. O uso da categoria se tornou tão controvertido que apoiadores de Bolsonaro têm processado ou propugnado que se processe quem quer que a use para se referir a eles. Mais do que uma categoria disputada em um processo político, “fascismo” e o adjetivo dela derivado, “fascista”, já estão se tornando, assim, objeto de disputa judicial.

Em Origens do totalitarismo, Arendt mostra com grande minúcia, rigor e densidade analítica de que modo o nazismo e o comunismo ganharam força na Europa. Mais especificamente, ela se propõe a olhar para as condições históricas que lhes foram propícias e mostra: (i) como técnicas forjadas na empresa colonial acabaram sendo empregadas no continente europeu; (ii) como a crise econômica e as migrações em massa concorreram para que as instituições políticas nacionais e internacionais, por exemplo, a Liga das Nações ruíssem; (iii) de que modo judeus, comunistas, minorias étnicas e religiosas puderam ser apresentados como inimigos a serem aniquilados; (iv) como se construíram as condições para a aniquilação de grupos sociais inteiros; (v) como até aqueles que não aderiram ao fascismo contribuíram para conduzir líderes medíocres, sem qualquer grande feito pessoal ao poder.

Para explicá-lo, Arendt analisa o papel dos sentimentos ou dos afetos na política, e esse é um aspecto da sua análise que pode ser útil para pensarmos o processo político brasileiro dos últimos anos, em que se amou e odiou o PT, o PSDB, a Lava Jato, o presidente Lula, a presidente Dilma, o juiz Sérgio Moro, o ministro Gilmar Mendes, o ministro Ricardo Lewandowski, o antigo Procurador Geral da República Rodrigo Janot, jornalistas, canais de televisão, o Ministério Público Federal e a Fiesp. São anos de ódio difuso, contra tudo e contra todos. Na análise de Arendt, é no solo em que se logrou semear a discórdia que grassa a produção social do inimigo, com a manipulação de sentimentos de abjeção e ódio para jogar uns contra outros enquanto um grande líder não surge para nos reunir.

Um aspecto para o qual Arendt nos dirige o olhar é que nesse processo de semeadura da cizânia a política assume uma configuração mais e mais adversarial, culminando num ponto em que debelar o inimigo se torna prioridade política absoluta e passa a definir ela mesma quem é amigo e quem não é. Um dos efeitos dessa configuração é que as alianças são de guerra e, portanto, construídas menos em função do que temos em comum do que para a destruição (política, mas também física) de parte da sociedade. Uma clara ilustração do perigo dessa dinâmica no Brasil é, para mim, que alianças de setores liberais nos costumes, mas críticos do modo hegemônico pelo qual o PT atuou no governo, foram construídas para o impeachment e não foram desfeitas, apesar do assassinato de Marielle[1], vereadora do Rio de Janeiro eleita por seu ativismo em defesa dos direitos humanos, e da retórica anti-minorias de Jair Bolsonaro e seus apoiadores, como o pastor Silas Malafaia. Pode ser que vencer o PT nas eleições nos possibilite superar esse estado, mas, se não, qual será a saída para a defesa dos direitos humanos, por exemplo, considerando que o partido conta com uma base social importante e tem sido protagonista nessa agenda há décadas?

Arendt mostra como a perseguição e destruição de judeus e comunistas, deficientes e homossexuais se tornou prioridade na Alemanha dos anos 1930 e 40, e isso a despeito da aguda crise econômica, da deterioração das condições de vida e da degradação da convivência. A ascensão de Hitler ao poder pode ser pensada como, ao mesmo tempo, uma causa e um dos efeitos dessa estranha prioridade, que contou com a cumplicidade dos Estados europeus e resultou na transformação do Estado alemão em um Estado criminoso. Como tamanha barbárie pôde acontecer no coração da Europa, contando com a adesão ou a conivência de intelectuais?

Em Origens do totalitarismo Arendt mostra que parte da população aderiu ao nazismo por compartilhar de sua visão, de seus valores e acreditou na capacidade de Hitler. Muitos na sociedade alemã não compartilhavam os mesmos ideais desta parcela, mas se moviam por ressentimento em relação aos países vencedores da guerra, em função das reparações econômicas que os vencedores impuseram à Alemanha – e esse sentimento foi habilmente usado pelo nacionalismo hitlerista. Outros ainda não estavam preocupados com o que Arendt chamava de “as coisas do mundo”, ou seja, os assuntos comuns a todos nós: estavam olhando mais para a própria vida e seus interesses particulares, não viam muito, não questionavam. Tudo isso, afirma Arendt, criou condições para que um movimento marginal e um líder medíocre chegassem ao poder através de eleições. Também possibilitou a progressiva destruição da vida das pessoas, retirando delas, primeiro, a sua cidadania – não mediante alterações constitucionais, mas por decreto – e depois a sua humanidade.

É claro, Hannah Arendt está falando de uma formação histórica muito específica e extrema, o totalitarismo, mas, como ela mesma alertou, isso não significa que elementos totalitários não possam estar presentes em democracias. Seu alerta, na realidade, é que eles podem estar presentes em outros regimes, para o que colaboram o alargamento da esfera social e da burocracia em detrimento da esfera privada e da política. Um dos ganhos que as Origens do totalitarismo representa é justamente a análise da forma burocrática de governo e seus efeitos sobre o poder entendido como ação social, ao passo que uma análise da ampliação da esfera social na Modernidade aparece alguns anos depois, em 1958, com a publicação de A condição humana.

Neste trabalho Arendt refletirá sobre a possibilidade da política considerando o que ela chamou de esferas da vida ativa, em contraposição à vida contemplativa, da qual se ocupava a tradição filosófica. As esferas da vida ativa eram a privada, a social e a política, em que teriam lugar, prioritariamente, o trabalho, a obra e a ação, três atividades que se distinguiriam por terem relação com as necessidades vitais, a estabilidade e a liberdade. Da reconfiguração dessas esferas decorrem, por exemplo, demandas por justificarmos escolhas pessoais (os amores e os afetos) que desafiem as normas sociais, o comprometimento das condições do pensar, que requer retirar-se do mundo para o silêncio, para o diálogo de si consigo mesmo, e da persuasão, que desde a Grécia Antiga é entendida como um endereçar-se à multidão e é a forma propriamente política de falar. Um dos efeitos do que chamei de reconfiguração das esferas da vida ativa é tornar a esfera política mais vulnerável à propaganda e ao controle social, e portanto à normalização, enquanto a ação política é, para Arendt, inesperada, incontrolável e imprevisível, como de fato vimos com as manifestações de 2013, também conhecidas por Jornadas de Junho.

No Brasil, temos assistido, ao contrário, a substituição do debate público pela propaganda a cada eleição, mas em 2018 nos damos conta de termos saído das magníficas peças publicitárias do horário eleitoral para os memes e as mentiras que circulam pelo aplicativo de conversas WhatsApp e outras mídias sociais. Nas mídias sociais não raro falamos com robôs a respeito. O tema é complexo, mas duas considerações inspiradas em Arendt podem ser acrescentadas às análises dessa mudança nos meios e, consequentemente, nas modalidades de comunicação[2]. A primeira é que a política está relacionada com aquilo que aparece. Quando falamos em programas de rádio e TV estamos no plano da esfera pública. Quando todos se reúnem diante de um aparelho, todos ouvem e veem a mesma coisa, ainda que cada qual desde o seu ponto de vista, e podem falar sobre este algo compartilhado. Na realidade, as pessoas parecem se sentir compelidas a trocar impressões e ideias, pois sabemos que a perspectiva de cada um é singular. Será que funciona assim com o WhatsApp? Como se dá a circulação de material de campanha pelo aplicativo que muitos de nós usamos para fins pessoais, familiares, sociais e profissionais, tudo ao mesmo tempo? Em meio a quais mensagens o material e as matérias (mentirosas ou não) de campanha circulam? Será que as pessoas leem o que repassam ou obedecem ao comando de repassar considerando mais quem enviou e o assunto do que o conteúdo da mensagem?

Nos últimos anos, as mídias sociais proporcionaram a muitos de nós a possibilidade de viver nas chamadas ‘bolhas’[3]. Em função do ambiente político acabamos selecionando aqueles com os quais mais concordamos do que discordamos, ou concordamos nas coisas essenciais. Também fomos passando mais tempo nas redes virtuais do que nas ruas ou a sós, no recolhimento que o diálogo interior impõe. Pensando com Arendt, um efeito dessa dinâmica pode ter sido que nossos círculos se reconfiguraram de modo a abarcar mais opiniões semelhantes às nossas do que uma pluralidade de opiniões. Porém, mesmo as atividades solitárias do pensar, querer e julgar – as atividades da vida contemplativa, para Arendt – requerem o encontro com o diferente, o reconhecimento da diferença, uma opinião em relação a ela e a imaginação de um mundo em que ela seja possível. Restringindo o nosso mundo a um eco das nossas opiniões e nos privando do encontro com o que nos desconcerta, mas também faz pensar, ficamos mais sujeitos a falsificações dos fatos, menos dispostos a assumir responsabilidade ou mesmo indispostos em relação a um mundo sobre o qual temos possibilidades mais limitadas de atuar.

Dois problemas de fundo aqui são a violência e a mentira na política, que têm prejudicado ou mesmo desfigurado o debate público brasileiro. Não são problemas de hoje, na realidade são problemas de sempre, mas que hoje alcançaram uma escala que não poderíamos imaginar. Em seu ensaio “Sobre a violência”, Arendt distingue categorias que costumamos confundir: (i) a força, que para ela é o que comumente chamamos de força física, a força do corpo; (ii) a violência, que é a ampliação da força física graças a implementos; (iii) o poder, que é uma ação conjunta, pautada por interações, trocas e persuasão; (iv) a autoridade, que designa relações hierárquicas, baseadas no reconhecimento mútuo da legitimidade da hierarquia, mas que, para Arendt, prescindem da coerção. Essas conceituações, que simplifico aqui, resultam do esforço que Arendt faz por distinguir, principalmente, poder, violência e autoridade, e o que para ela é necessário para argumentar, por um lado, que a violência é pré-política, pois o poder se baseia na ação conjunta e na persuasão, e, por outro, que uma crise de autoridade não legitima uma busca por restaurá-la violentamente.

Penso ser consenso que vivemos uma crise de autoridade das instituições Republicanas no Brasil, com a perda de credibilidade da Presidência, do Legislativo e, mais recentemente, do Judiciário, bem como de instituições da sociedade civil, como os partidos políticos e a imprensa. Falamos em perda de autoridade dos pais e da escola. Com credibilidade junto à população restaram as forças armadas e as igrejas. Quando se empenha naquelas distinções, entretanto, Arendt está afirmando que só há saída pela política, logo, a autoridade só pode ser restabelecida pela política, o que implica recuperar a dignidade e as condições da ação. Isso não significa que a violência não tenha um papel em processos políticos, e sim que a violência exclui a política: ela pode ser necessária para nos libertar da opressão, mas nunca se justifica de antemão e nunca será criadora. No caso do Brasil, por que a violência estaria irrompendo? São inúmeras as possibilidades de resposta a essas questões e elas passam, claro, por nossa história, pela relação que estabelecemos historicamente com a violência no geral e a violência na política em particular. Mas Arendt pode nos ajudar a entender ao menos uma faceta da violência na política tal como ela se manifesta atualmente, ou seja, contra o PT, contra políticos (Marielle, Lula, Bolsonaro), movimentos sociais e minorias em geral, com exceção, talvez, de judeus e evangélicos.

Em seu ensaio “Sobre a violência”, escrito a propósito de 1968, Arendt comenta a certa altura que o cinismo tende a suscitar reações violentas por negar os fatos, desqualificando de quebra o interlocutor. Por que ele desqualifica o interlocutor? Ecoando os gregos antigos, Arendt entende que a política é o domínio dos relativos, e não do absoluto, ou seja, é o lugar das opiniões, e não da verdade. Para ela, não há verdade em política, que é uma questão de ponto de vista, e não de correção, é uma questão de bons, e não de bem. Essa é uma concepção relativista de política, mas no pensamento arendtiano ela está ancorada em uma igualdade radical, pois, para Arendt, a esfera política se constitui artificialmente, a partir da delimitação de um espaço no qual todos são iguais – e é sua igualdade formal que lhes dá liberdade de ser diferentes sem que sua diferença seja um fator de desigualdade. Assim, aquela relatividade torna-se pluralidade, atuando para impedir que uns sejam mais iguais que outros e para que todos possam se manifestar sobre o que é comum e, portanto, visível, sem que isso comprometa o seu status em relação aos demais.

A percepção de parte da sociedade de que eram cínicas as falas de lideranças políticas brasileiras negando fatos claros em momentos recentes de nossa história e de que certos grupos sociais agiam como detentores do bem pode ser uma pista a perseguir se quisermos entender melhor a ira e o ressentimento de parte da população em relação ao PT, aos políticos de um modo geral e a minorias. Falo em percepção porque não questiono a justiça das demandas de negros, pessoas LGBT, indígenas, mulheres, nem nego a importância de nossa história de inclusão, mas pelo que tenho lido e ouvido entendo que parte dos votos em Bolsonaro é de pessoas que se ressentem de terem sido negligenciadas, de não terem tido voz em uma política em que para elas só as minorias pareciam ter espaço. Uma interpretação arendtiana dessas falas pode nos levar a compreender seu voto como a manifestação de um desejo por revalidar seu ponto de vista, como se estivesse a afirmar que o não pertencimento a uma minoria não significa não ser singular.

Evidentemente, faço aqui um esforço incipiente para entender o que acontece bem no calor dos acontecimentos, e essa leitura pode se mostrar descabida. Mas, se ela tem algum sentido, também cabe pensar que, para sairmos dessa situação, pode ser necessário um esforço por desarticular essa visão de política calcada na oposição minoria-maioria e no postulado do primado absoluto da maioria que a maioria eleitoral agora reivindica. Como mostram as relações entre católicos e evangélicos no Brasil, minorias e maiorias são contingentes, e essa contingência pode ser explorada para a construção de alianças. Em qualquer hipótese, dois problemas com as respostas que essa parcela da população tem dado são, no entanto, (i) o uso retórico e físico da violência, que dá mostras de começarmos a passar do desejo por restabelecer o próprio ponto de vista à aniquilação do outro, e (ii) a confusão entre o que é restabelecer uma perspectiva individual e o que é deslocar os direitos humanos para uma posição marginal e instituir a lei do mais forte, ou, nesse caso, do maior número.

3.

No ensaio “Filosofia e política” aprendemos com Arendt que o mundo se abre para cada um de nós de uma forma única, ou seja, cada um de nós olha para ele desde um lugar próprio. Por isso nós, seres humanos, não temos para Arendt uma natureza humana, mas sim uma condição humana. É a partir dessa condição, necessariamente singular, que opinamos sobre o que interessa a todos nós e damos a nossa contribuição àqueles com os quais o compartilhamos o mundo. Se alguns aspectos de nossa condição são compartilhados com outras pessoas e ele é ou se tenta transformá-los em um fator de desigualdade, temos então um problema político. Como para Arendt todos os pontos de vista são importantes inclusive para estabelecer os fatos, a pluralidade é, ao mesmo tempo, um fato e um valor: dela dependem a política, o pensamento e a imaginação, que requerem incorporar outras perspectivas à nossa. Nessa linha, pensamentos e socialidades unas falsificam o mundo, limitam a nossa imaginação e empobrecem o pensamento. É preciso, em suma, buscar compreender sem ser compreensivo[4], entender desde diferentes óticas, sem que isso implique um relativismo moral, e nos reconhecermos como interligados.

No atual momento da política brasileira, e também mundial, tenho a impressão de que pensamos no que Arendt descreveu como uma fenda no tempo, um hiato entre o passado e o futuro. Hoje os desafios que a conjuntura nos coloca decorrem em parte do fato de que o mundo em que crescemos, fomos criados e que acreditávamos ser duradouro pode não ter durado uma geração: este pode ser um momento em que ele não é mais, e o novo não é ainda. Nesse hiato são os exemplos que podem iluminar os nossos caminhos. Não por acaso Arendt escreveu sobre Rahel Varnhagen e uma série de pequenas biografias, de Rosa Luxemburgo, Angelo Giuseppe Roncalli, Karl Jaspers, Isak Dinensen, Walter Benjamin, Bertold Brecht, entre outras reunidas sob o título Homens em tempos sombrios. O que esses nomes têm em comum? Em tempos sombrios encontraram refúgio no pensamento, uma forma de resistência. Se os maiores medos dos que temem pela vida humana e a democracia se tornarem realidade, ficará mais clara outra lição de Arendt, a de que pensar é conversar, não obedecer. É abrir espaço, enfim, para o juízo e a escolha.

______
NOTAS

[1] PAIT, Heloisa; NAGAMINE, Renata. Marielle, Presente! Luto político e reconfiguração da política nacional. In: VITALE, Denise; NAGAMINE, Renata. Gênero, direito e relações internacionais: debates de um campo em construção (a ser publicado em 2018 pela EDUFBA – no prelo).

[2] PAIT, Heloisa. Embates sem contexto e democracias sem liderança: impactos da nossa vivência em redes sociais em nossas escolhas eleitorais (a ser publicado na revista Unesp Ciência, Outubro de 2018).

[3] PAIT, Heloisa. Embates sem contexto e democracias sem liderança: impactos da nossa vivência em redes sociais em nossas escolhas eleitorais (a ser publicado na revista Unesp Ciência, Outubro de 2018).

[4] GEERTZ, Clifford. Os usos da diversidade. In: Nova luz sobre a antropologia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Renata Nagamine

Doutora em direito internacional pela USP e pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFBA.