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A geração bolsonarista: tentativa de sondagem e descrição

por Guilherme Hobbs (17/10/2019)

O jovem bolsonarista está magnetizado pelo sorriso fácil do Capitão redivivo.

“[Elias] Sentou-se debaixo de um junípero e desejou a morte: “Basta, Senhor – disse ele –, tirai-me a vida, porque não sou melhor do que meus pais”. Deitou-se por terra e adormeceu debaixo do junípero. Mas eis que um anjo tocou-o e disse: “Levanta-te e come”.”
I Reis, 19.

1.

Qual a diferença entre o petismo, já velho e conhecido, e a tumultuosa onda “bolsonarista”? Em primeiríssimo lugar, a diferença de origem — já disse um sábio que o começo é metade da obra inteira. O petismo — horresco referens — foi por décadas o partido informal da parte mais influente da Igreja Católica no Brasil. O PT é um desaguar contaminado dos movimentos de “apostolado laical” começados na década de 30 com a Acção Católica e a Liga Eleitoral Católica de Alceu Amoroso Lima e Plínio Côrrea de Oliveira, origens da JUC (Juventude Universitária Católica), que nos anos 60 serviu como base para os comunistas formarem a Ação Popular (berço político do Betinho e outros militantes). O PT foi gestado e alimentado, intelectualmente e na formação de quadros, por universidades e colégios “católicos” de norte a sul do país (muitíssimo significativamente, o Partido foi fundado num colégio católico de elite em São Paulo, em 1980). Dois de seus principais mentores vieram, respectivamente, da Ordem Dominicana e Franciscana: Frei Beto e o malfadado Boff. Há décadas, documentos de algumas comissões da Igreja no Brasil têm discurso alinhado ao discurso oficial petista.

Isso explica o inestimável prestígio que o Partido desfrutou desde os primeiros dias entre parcela da elite e o grosso das classes médias. Em parte, era um reflexo do prestígio e da influência que a própria Igreja retinha. Um prestígio que o velho PCB jamais sonhou em alcançar — pois não nasceu à sombra de uma instituição basilar da nossa sociedade como a Igreja, mas se formou de intelectuais marginais e filhos de operários. Para a consciência da classe média, o PCB sempre foi “o outro”, às vezes tolerado, às vezes não, mas o PT eram seus próprios filhos e netos. Eram parte de “nós”.

Já o bolsonarismo tem origem num obscuro deputado do “baixíssimo-clero” (autodefinição do Jair), misto de Dom Quixote com Johnny Bravo, por décadas arauto de corporações militares no Congresso, que, três anos antes da eleição, era o herói de somente um gueto. Já no ano eleitoral, acercaram-se dele grupos cheios de vigor, mas exígua raiz em nossa História e elites: ultraliberais, fãs de Ronald Reagan e evangélicos neopentecostais. Isso explica o desembaraço com que a mídia caça diariamente o presidente como a um rato intruso e a correspondente aposta irrealista dos seus apoiadores numa aliança sagrada entre presidente & povo contra tudo e contra todos . . . (quem quer que caminhe pelas ruas mijadas e escarradas do Brasil sabe aonde isso vai dar . . . em mais confusão e impotência geral).

Saído do nada, mirando alto no infinito e além, Messias desde o nome, o desajeitado Jair tornou-se uma referência, um paizão, um apoio e um alento a uma multidão de jovens do Oiapoque à Barra da Tijuca. O gracejo de ser “o mito” virou coisa muito séria — sem deixar de ser uma piada chapa-branca — e o homem surgiu de repente como um carismático avatar da contra-cultura conservadora, anti-mainstream e anti-“establishment”, invertendo afinal o velho lema de Hélio Oiticica numa inesperada versão: seja herói, seja bandido (aos olhos dos verdadeiros bandidos).

Ascensão fulminante, improvisada e solitária que foi causa e efeito de uma politização apaixonada de quase toda a juventude pensante, a favor ou contra “ele”. Isso jamais acontecera entre nós, pois a política jamais dependeu da politização ostensiva e convicta dos jovens como agora se vê. Nos anos 60, o jogo real era entre os provectos do PC e os provectos do Exército, e não entre (alguns poucos) “brotos” do Mackenzie e da Maria Antônia. Desta vez, porém, os jovens foram chamados em massa, aos borbotões, para inundar avenidas e redes sociais, diante da falta absoluta de velhos capacitados e sem ficha criminal na sala . . .

E o que os jovens, em conjunto, têm a oferecer além de sua energia bruta e revolta contra uns alvos fáceis? Disse alguém que, sem os radicais, é impossível fazer uma revolução, mas, com eles, a revolução pare um governo ingovernável. Numa transformação cultural, sem os jovens as mudanças dependem da substância, persistência e convencimento dos pensadores e inovadores, mas, com os jovens no eixo do jogo, uma boa piada, uma risada gostosa e debochada e uma arminha feita com as mãos ajudam a galgar a presidência da República.

2.

O jovem. Que triste é o jovem quando descrito sem ênfase. Esta descrição encontramos no desconfortável artigo “O Imbecil Juvenil”, de Olavo de Carvalho, onde lemos que, por uma cruel lógica, toda política com os jovens no centro do jogo é política de massas e nada é mais deseducador e estupidificante que uma política de massas. Uma política que gira em torno de rótulos de “herói” e de “bandido” ou, para usar um termo da moda, de poucas e burras narrativas e não de milhares de pequenos fatos. Os pequenos fatos que só os velhos, os santos e os poetas sabem ordenar.

A revolução cultural dos anos 60 foi a obra meticulosa de muitos velhos, que a vinham preparando desde os anos 30, desde os dias do Marquês de Sade, e que só chamaram os “brotos” quando o jogo já estava jogado. Com essa base, foi sólida, durável e ninguém soube revertê-la até hoje e nem saberá tão cedo. Quem estude aqueles anos entende que a Revolução Sexual, por exemplo, não foi uma explosão espontânea de entusiasmo juvenil, mas muito do que foi feito e institucionalizado tinha os pesados volumes de Freud, Reich, Horkheimer, Marcuse etc como os pilares silenciosos sob o chão dos happenings e festivais.

No Brasil, a revolução cultural socializante teve muitos velhos a guiarem-na e respaldarem-na desde altas posições na imprensa, na academia e na Igreja e, sob essa sombra ironicamente paternal, os “brotos” puderam tocar seu violão, fumar sua erva e criar toda uma nova música (e cultura) “popular” brasileira com calma e prazer, enquanto cooperavam com o trabalho maior da História sob a batuta discreta dos velhos.

É o contrário deste quadro o que temos hoje. Não há um único nome bem posicionado na Igreja, na academia ou na mídia respaldando a pretensão de revolução conservadora. Houve apenas um esboço de reinterpretação da realidade nacional antes da conquista da presidência, o que agora afunila o debate público em meia-dúzia de temas bem rasos: pistola no coldre, bandido na cadeia, volta dos empregos e menos impostos. Ora, é fácil perceber que uma “esquerda melhorzinha” consegue suprir necessidades tão imediatas . . . O que torna, por consequência, o “Conservadorismo” um nomão abstrato e supérfluo no debate prático e na mesa de decisões.

Enquanto isso, o jovem, magnetizado pelo sorriso fácil do Capitão redivivo, o único com sangue verde-e-amarelo correndo nas veias, o próprio “povo brasileiro encarnado” (como li no Facebook outro dia…), contra tudo e contra todos pelo Novo Brasil, o jovem lança-se à frente em defesa de seu herói, grita, xinga, ama, sonha, tenta convencer outros da sua verdade, mas, quando chega a noite e olha para os lados, não vê nas suas fileiras o povo das ruas sujas, a longa linha dos desempregados, a Alta Cultura, a Cristandade, mas apenas outros tantos jovens partidos como ele próprio. À frente, o Soldado e a constelação de valores por ele representados no coração deste jovem, nos “camaradas de luta” pouco calor e troca humana e à volta e em tudo uma desarmante, dissolvente noite…

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
Não existe porta

3.

É claro que, para a maioria, esse instante de consciência não chegou. Para outros, muitos outros, inumeráveis outros, não chegará jamais. Mas, para os melhores e mais sinceros, já está chegando a cada batida seca e inesperada da realidade na porta da consciência . . . A cada nova “canelada”, “mitada” espúria e incongruência injustificável . . . E, quando chegar pra valer, verão que investiram crença, amor, tempo, o próprio nome, na defesa, na defesa do quê mesmo? É claro!, do Brasil, dos Valores, da Civilização . . .

Mas onde têm verdadeira vida esses ideais, se tão débil e incerta presença têm onde ele, jovem, os procurou? Se não estão na política, no engajamento, na “luta contra o establishment”, no Novo Brasil, no Povo abstrato com P maiúsculo, na missão de Jair Messias Bolsonaro, onde encontrar a verdade concreta dos seus ideais? Onde — se é que fica neste mundo . . . — a realidade afinal corresponde ao apelo encantado do coração?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Os poucos que persistirem na busca além dessa curva escura do caminho darão o bom fruto que couber a esta geração dar.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
— Ó vida futura! nós te criaremos

Guilherme Hobbs

Programador web em São Paulo. Estudioso de história e política.