Não será surpresa se, agora, o flerte for com medidas políticas menos responsáveis.
Pela terceira vez nesta década, o Boca Juniors saiu derrotado de uma disputa contra o River Plate na Taça Libertadores da América. Para quem não se interessa por futebol, essa notícia pode parecer banal, mas é significativa por alguns motivos. O primeiro deles: o Boca Juniors tem uma imagem de vencedor indestrutível na América Latina – nas últimas décadas, chegou a ser chamado de Rei de Copas, graças à recorrência com que levantava taças, sem mencionar o fato de que seu estádio, La Bombonera, é um dos espaços mais sagrados deste esporte de multidões e de paixões.
Afora isso, e talvez esse seja o gancho que permite a ilação para com o comentário que vem a seguir, existe o fato de a eliminação do Boca Juniors, clube popularíssimo na Argentina, pode ter sido apenas o começo de uma semana ruim para Maurício Macri, que foi presidente da agremiação exatamente no período em que o clube argentino construiu essa imagem de vencedor absoluto, o Rei de Copas do parágrafo anterior.
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No ano passado, estive na Argentina para participar de um Congresso na Faculdade de Filosofia e Letras, no centro de Buenos Aires, mais precisamente no Centro Cultural Paco Urondo. Naquele momento, em outubro de 2018, o Brasil estava em transe com as eleições presidenciais. Para muitos leitores e eleitores, foi com choque e pavor que se viu a chegada de Jair Bolsonaro no segundo turno e ao longo de todas as apresentações daquele evento esse “estranhamento” para com o novo pairava no ar.
Ocorre que não era apenas o Brasil que estava em inquieto. Também na Argentina o cenário político não era mais estável – mas, verdade seja dita, sem comparação possível com a onda gigantesca de manifestação que se vê nas ruas chilenas nos últimos dias. Naquela segunda semana de outubro, por exemplo, havia protestos em torno do aumento do preço do gás e, desde que Macri chegou ao poder, em 2015, foram cinco paralisações, sem mencionar os protestos nas ruas e as críticas a um presidente que alguns anos antes acenava para a mudança, calcada, sobretudo, pela fé na agenda liberal na Argentina.
Talvez seja o caso de retomarmos o contexto de 2015 para entendermos o tamanho dessa frustração.
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Entre 2003 e 2015, a Argentina esteve sob o comando dos Kirchner. Quando Nestor Kirchner chegou ao poder, é preciso sempre lembrar, o país tinha acabado de atravessar uma crise sem precedentes nos anos 2000 e 2001. Se, por um lado, um pouco desse caos pode ser imaginado nas cenas derradeiras de “Nove Rainhas”, filme dirigido por Fabian Bielinsky, não se pode ignorar as sequelas daquele período. Nos primeiros anos da década passada, a performance argentina esteve tão abaixo do esperado, que estabeleceu um novo normal para presidentes da República daquele país, que, substituídos em série, deram um novo sentido à importância da legitimidade política. Exatamente por esse motivo, quando Nestor Kirchner chega ao poder, em 2003, sua sobrevivência estava, de uma parte, ligada ao alinhamento com o peronismo; e, de outra, articulada a uma agenda mais próxima da participação efetiva do Estado para dinamizar a vida econômica.
A estratégia deu certo porque Kirchner também soube se aliar aos parceiros da região que, na ocasião, se beneficiavam com as possibilidades das commodities, e esse alinhamento geopolítico trouxe o apoio de Brasil e da Venezuela. Em relação a Hugo Chávez, é fundamental retomar, aqui, que foi num encontro em Mar del Plata, em 2005, que Chávez, Lula e Kirchner rejeitaram o Acordo de Livre Comércio das Américas, a Alca. Em 2007, o sucesso de Nestor Kirchner tornou possível a eleição de Cristina Kirchner para a presidência. Uma vez no poder, Cristina não somente dobrou a aposta em termos econômicos (e aqui a aliança com a China é o feito mais destacado), como, sobretudo, desidratou seus adversários e criou um ambiente de hostilidade com a imprensa, sobretudo com veículos como o Clarin.
Vale a pena frisar, nesse ponto, que o clima de hostilidade política, que hoje parece ser a condição elementar da comunicação violenta na opinião pública brasileira, já havia sido normalizada durante a administração Kirchner. Criou-se uma disputa de trincheira, a ponto de intelectuais públicos saírem no embate de um modo que não pode ser considerado saudável e tampouco recomendável.
Por isso tudo, quando, em 2015, Maurício Macri aparecia à frente na corrida pela presidência da República, o sentimento era de renovada esperança, sobretudo em quem acreditava que o ex-presidente do Boca Juniors fosse aplicar ali um modelo liberal à prova de balas (e de falhas). Só que às vezes o manual não dá conta de toda a realidade. Ou, por outra, fé demais não cheira bem.
O olhar sobre a crise argentina não deve ser diferente daquele lançado pelos impasses do desenvolvimento econômico na região latino-americana na última década. O receituário envolve medidas draconianas, que, a rigor, entregam resultados no longo prazo – e não existem atalhos para um crescimento robusto em poucos meses. Nesse caso, a palavra esperança talvez fosse a menos adequada para aquele momento pós-eleição, especialmente diante dos desafios que se apresentavam à frente.
Uma vez eleito, Maurício Macri colocou em marcha o seu plano para mudar a Argentina. Seu partido, o Cambiemos, chegou mesmo a crescer de modo exponencial naquele ano, conquistando votos e maioria em cidadelas dos Kirchner em 2015. Além disso, Cristina vinha sendo acusada de corrupção, de modo que a vitória de seu adversário, para muitos, representava o rechaço às práticas perversas da política.
De 2015 para cá, no entanto, não somente as expectativas com o modelo proposto por Macri não deram resultado (ou porque eram medidas impopulares, ou porque essas iniciativas foram feitas aos poucos), como também reabilitaram a sua principal adversária na última eleição. No início deste ano, numa cartada política bastante hábil, Cristina Kirchner cedeu a cabeça de chapa a Alberto Fernandez, num movimento que, aparentemente, paralisou a situação, que desde o primeiro semestre só perdeu força.
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Não resta dúvida de que o cenário de 2019 é ainda mais crítico do que o da última eleição, há quatro anos. Os dados apontam para o aumento da pobreza no país. E isso serve de alerta para um ambiente que pode se tornar ainda mais hostil, sobretudo porque se imaginava que o receituário liberal pudesse oferecer alternativas propositivas dentro do sistema político. O ressurgimento dos Kirchner é prova de que, na maioria dos casos, a projeção de economistas e analistas políticos perde de perspectiva o contato sensível para com a população, que, em maior ou menor escala, só se interessa pelos modelos na medida em que estes geram empregos e mitigam a pobreza.
Se a alternativa política liberal não surtiu o efeito desejado, não será surpresa se, agora, o flerte for com medidas políticas menos responsáveis, porém de resultados mais imediatos de curto prazo. Quando se observa que, em 2015, a vitória de Macri significou uma nova esperança para os evangelistas do liberalismo na região, não deve soar como boa nova as últimas notícias de um continente que parece estar em chamas.
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Até o momento, a final da Libertadores da América ainda está marcada para acontecer no Estádio Nacional de Santiago, no Chile.
Fabio S. Cardoso
Jornalista. Autor de Capanema (Record, 2019).