O filme possivelmente nos traz à memória o fato de que o aspecto lúdico só tem pleno sentido se coexiste com a vida da sobriedade.
Alerta: O texto abaixo contém spoilers
1.
Talvez nesse momento em que as leituras e interpretações de parte considerável das obras que chegam ao grande público reduzem-se, em geral, a justificações ideológicas ou simples esquemas moralizantes, cabe uma breve rememoração das raízes estéticas de um personagem como o Coringa.
Como se sabe, o visual expressionista que Paul Leni nos traz em seu clássico O Homem que Ri (1928) é uma das mais óbvias inspirações para o esgar característico do vilão que agora, nas discussões minimamente consideráveis, é colocado num leito de Procusto em que é dissecado e categorizado ora como símbolo da violência dos chamados “celibatários involuntários”, ora como emblema de um ressentimento de Antifas.
A grande dificuldade de toda crítica, como sempre, é manter-se rigorosamente vinculada à dimensão estética, sem que se despreze, no entanto, os elementos históricos, sociais, políticos e econômicos que, em última análise, são o substrato do qual procede a obra.
Retornando, pois, à questão das origens do personagem, e que talvez seja essencial para uma compreensão o menos parcial possível sobre a tônica do filme, é lícita ainda a lembrança de que o filme de Paul Leni se baseou, por sua vez, no romance homônimo de Victor Hugo, em que o “homem que ri” forçosamente (em razão de uma escarificação feita por vingança em seu rosto) representa – como o próprio personagem Gwynplaine diz num seu discurso na Câmara dos Lordes inglesa – a violência perpetrada constantemente pela nobreza sobre o resto da humanidade. Gwynplaine é “o povo… o Homem”, que, por sua vez, exibe sua risada involuntária e perene à nobreza.
Por óbvio, esse mesmo riso sardônico dirigido aos poderosos da terra se faz presente em Coringa, é o elemento que guia e no qual se baseia os críticos que veem na obra a ascensão de movimentos populares que se insurgem contra as elites financeiras e políticas do Ocidente. No filme, a imprensa, inclusive, propõe que o assassinato dos três yuppies[1] que trabalhavam na companhia Wayne, assim como a celebração do ato por parte de muitos em Gotham, sejam o embrião de um movimento “antirricos”.
Jeffrey A. Tucker, por exemplo, num breve ensaio sobre o filme, entende que o impulso inerente ao Coringa transcende as simples categorizações políticas, embora, logo em seguida, lamentavelmente também se valha do personagem para uma exaltação do liberalismo.[2]
Muitos identificam o Coringa ao arquétipo do trickster, embora, como saibamos, este último é em geral amoral, não necessariamente mau. O trickster às vezes auxilia, mas ocasionalmente também impede o progresso do herói. Essa visão, no entanto, talvez não seja cabível, pois, se se compara Coringa a Loki (o trickster por excelência), vê-se que, no primeiro, está ausente o aspecto gracioso. A risada do Coringa é, portanto, trágica (voltaremos a isto mais adiante).
Batman, por outro lado, estaria mais próximo do arquétipo do guardião, a gárgula que afronta, assusta e interpõe limites a um objeto ou território. O interessante, porém, é que ambos habitam (e parasitam) Gotham: se Coringa é o id da cidade, o impulso destrutivo e caótico, Batman, por seu turno, seria o superego, o juiz punitivo e ordenador de uma cidade recorrentemente condenada à destruição.
O acúmulo do lixo e a multiplicação de ratos na cidade, devido à greve dos coletores, é de certo modo uma analogia ao crescente processo de obscurecimento e desagregação da personalidade de Arthur Fleck. Perante as revoltas do “povo miúdo” e o caos e violência crescentes, Thomas Wayne, o grande empresário, prometendo a resolução dessas sucessivas crises, apresenta sua candidatura como prefeito.
Nesse ponto, leituras mais enviesadas à esquerda talvez não tenham dado conta de que, embora a comparação com um Trump seja quase inevitável, também é certo que pessoas inteiramente desprivilegiadas, como a mãe de Fleck, viam sinceramente em Wayne um messias. A postura “linha dura” de Wayne, aliás, é bastante verossímil, se levarmos em conta que em O Batman de Flashpoint, um universo alternativo em que é o jovem Bruce a vítima do assassino, Thomas se torna um Batman extremamente violento e odioso.
Cabe aqui também atentar-se para a entrevista de Thomas Wayne a uma emissora de TV. Após as já mencionadas mortes dos jovens que trabalhavam para a companhia Wayne, Thomas, num discurso meritocrático que inferioriza e irrita o protagonista, acusa o assassino mascarado (no caso, o próprio Arthur Flack) de covardia, pois, segundo sua concepção, quem oculta seu próprio rosto não se configura como agente moral. A ironia aqui está no fato de que seu próprio filho, Bruce Wayne, fará também recurso da máscara para demonstrar não covardia, mas sua coragem.[3]
A questão central, porém, retornando ao tema dos arquétipos, é que, se o Coringa assumiu a face da comédia, Batman não é capaz de livrar-se da máscara da tragédia. Ainda que o Arthur Fleck diga, ao final, que, contrariamente ao que pensava, sua vida é uma grande comédia, a célebre risada do vilão é trágica, pois é involuntária, resultado de um destino que se lhe mostrou inescapável.
2.
Para além do Coringa fascista ou anarquista, há outras duas obras contemporâneas que, se não apresentam personagens igualmente destroçados em sua psique, descrevem, entretanto, nossa “sociedade do cansaço”. Assim, tanto no filme Parasite (2019), dirigido por Joon-ho Bong, quanto no romance Serotonina, de Michel Houellebecq, vemos a ascensão dos “parasitas” (ou ao menos a dos “homens subterrâneos” de Dostoiévski), que é simultaneamente uma das causas da demofobia e dos vários populismos. Ademais, tanto Joon-ho Bong quanto Houellebecq, a despeito das diferenças notórias de formação entre ambas as sociedades retratadas, retratam a alienação e o sadismo que regem os comportamentos e relações atuais. Conforme o termo de Jacques Généreux, trata-se de uma dissocieté, uma força centrífuga que desassocia o sujeito e as comunidades, rompe os vínculos tradicionais, fragmentando a sociedade em elementos rivais regidos pelo culto da vitória individual e pela competição irrefreável. Daí advêm a tribalização, a guetização e os movimentos identitários, que, na busca de laços, reduzem-se a identificações primárias (biológicas), incapazes de servirem de fundamento para uma sociedade.
Há um exemplo irônico dessa dissociedade em Coringa, durante a exibição daquele que possivelmente é o filme mais célebre de Charles Chaplin (diga-se de passagem que o personagem de Arthur Fleck deve muito, em seus trejeitos e gestos, a Chaplin). Enquanto assistem a “Tempos Modernos”, os industriais, empresários e ricos de Gotham riem e se divertem. A ambiguidade da cena é que se pode vê-la como um leve sadismo – o industrial rindo do trabalho mecanizado e despersonalizado do trabalhador, que tem no filme de Chaplin sua representação icônica – ou alienação, já que são incapazes de se sentirem incomodados com os protestos generalizados à frente do local de exibição. De todo modo, assim como as obras de Joon-ho Bong e Houellebecq, o filme de Todd Philips trabalha com essa convergência (e mesmo identidade) entre alienação e sadismo: o homem moderno é sádico porque alienado, e vice-versa. A empatia (a sua falta, na verdade) é um dos núcleos do filme, e os vieses ideológicos que reduziram o filme a manifesto de violência ou fruto da imoralidade progressista ironicamente terminam sendo sintomas dessa incapacidade de identificação ou comiseração para com o próximo.
O Coringa, curiosamente, é um dos poucos que se queixam da falta de empatia das pessoas, de identificação e solidariedade de seu entorno social – e paradoxalmente o faz num programa de comédia. Aliás, a morte televisada de Murray Franklin (Robert de Niro) com um tiro na cabeça talvez seja uma referência ao trágico suicídio de Christine Chubbuck,[4] em 1974 (a época aproximada em que se passa Coringa), que, pressionada por seus problemas emocionais e psicológicos[5], e julgando-se preterida também pelos interesses corporativos da rede midiática em que trabalhava, atirou contra si própria enquanto apresentava o telejornal.
Por fim, uma das possíveis chaves de leitura para a personalidade de Coringa seja vê-lo não só como a encarnação do homo ludens, mas sua própria absolutização. Em vários diálogos desse novo Coringa encontramos alusões ao Comediante de Watchmen, aquele que, segundo suas próprias palavras, se tornou a paródia do século XX, a autocrítica irônica de um século cujos primórdios foram os mais otimistas. O filme Coringa possivelmente nos traz à memória o fato de que o aspecto lúdico só tem pleno sentido se coexiste com a vida da sobriedade; pois, afinal, poucos calculam e demonstram real percepção do papel e peso sociais e econômicos que o entretenimento tem na vida contemporânea, bem como dos desequilíbrios que disso resultam.
No célebre Asilo Arkham – Uma Séria Casa em um Sério Mundo (1989), escrito por Grant Morrison, em que Batman, à maneira dos heróis clássicos, realiza sua catábase, uma psiquiatra diz que o Coringa sofre de “supersanidade”, “uma nova e brilhante modificação da percepção humana, mais ajustada à vida urbana em fins do século XX, que faz com que o Coringa não tenha controle sobre o fluxo de informação sensorial que recebe do mundo exterior”. Em resumo, ele absorve tudo que nossa mente seleciona e recorta ao longo do dia e mesmo da vida. Nesse sentido, o Coringa seria um catalisador mental de que tudo que se passa em sociedade. É aconselhável, portanto, ouvi-lo.
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NOTAS
[1] Curiosamente, a morte dos yuppies guarda certa semelhança com os assassinatos cometidos por Patrick Bateman em Psicopata Americano, baseado no livro homônimo de Bret Easton Ellis. Christian Bale (que curiosamente fará o papel de Batman posteriormente) confessa que, para sua atuação de um personagem totalmente destituído de empatia, se inspirou numa entrevista concedida por Tom Cruise ao um late-night talk show, em que Cruise agia de modo absolutamente artificial, afetado e calculado. É interessante notar que Arthur Fleck, preparando-se para o programa de Murray para o qual havia sido convidado, também busca imitar detalhadamente os gestos de uma celebridade entrevistada no talk show.
[2] Tucker entende que Coringa é um “adepto” daquilo que Mises chamou de destrucionismo. Nas suas palavras: “What is that thing he embraced? It has a particular name in the history of ideas: Destructionism. It’s not just a penchant; it’s an ideology, an ideology that purports to give shape to history and meaning to life. That ideology says that the sole purpose of action in one’s life should be to tear down what others have created, including life itself. This ideology becomes necessary because doing good seems practically impossible, because one still needs to make some difference in the world to feel that your life has some direction, and because doing evil is easy. The ideology of destructionism enables a person to rationalize that evil is at least somehow preparing the ground for some better state of society in the future”. Ao que parece é uma visão mais empobrecida e economicista daquilo que outros autores já consideravam a “doença” espiritual (e portanto suprapartidária e supraideológica) do homem moderno: prometeísmo (A. Calderón), humanismo (R. J. Rushdoony) ou niilismo (padre Seraphim Rose).
[3] A temática das máscaras (recorrentes nas obras do universo ficcional de Batman) extrapola este breve ensaio.
[4] Este acontecimento inspirou o filme Christine (2016), dirigido por Antonio Campos.
[5] Aparentemente, até o presente momento, poucos críticos se atentaram para a própria questão dos distúrbios psicológicos, o que vulgarmente se chama de doenças mentais. Há aí amplo terreno para os que se interessam pela linha popularizada de Thomas Szasz. Outra linha sugerida pelo filme é justamente a questão do excluído numa sociedade marcada cada vez mais pelo paradigma da efetividade e produtividade. Nassim Taleb, por exemplo, fala que um dos grandes problemas atuais é a confusão entre progresso e otimização, e, repetindo autores clássicos e cristãos, nos lembra que o critério de avaliação da grandeza de uma nação é o cuidado que dispensa aos seus elementos mais frágeis e vulneráveis. No mundo tecnocrático (e lembremos que Gotham City já foi definida como uma New York on steroids, a realização babélica da “cidade do homem”), onde resta o sujeito inadequado? Onde está o lugar e disponibilidade para com o especial, o excêntrico, o insano?
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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