O livro de Luiz Philippe é uma obra de pedagogia liberal ao grande público.
Ao afirmar que o Brasil é um país atrasado, Luiz Philippe de Orleans e Bragança encara a tarefa de indicar qual a fórmula à saída do marasmo, o caminho que precisa ser percorrido e, o ponto que se quer chegar. O subtítulo na capa dá alguma indicativa: “o que fazer para entrarmos de vez no século XXI”. Em suma, o signo do atraso é o gigantismo estatal e a série de travas contra a sociedade, que postergam a fruição da liberdade econômica.
O livro do mais politizado dos membros atuais da Família Real brasileira serve de manifesto e apresentação do pensamento de Luiz Phillipe. Com o mesmo ímpeto do bisavô, Dom Luís de Orléans e Bragança – filho da Princesa Isabel, que movimentou a política brasileira com seus manifestos embebidos de liberalismo social no início do século XX, quiçá esteja cumprindo agora aquilo que seu ancestral quisesse fazer. Se a morte não o tivesse golpeado, como consequência da atuação heroica na Grande Guerra, possivelmente Dom Luís teria voltado ao Brasil e se candidatado, teria se tornado líder político nos anos 1920 e 1930 e, por ventura, rivalizaria com Vargas (!?). Não sabemos. Mas é neste século XXI, desde o golpe do 15 de novembro de 1889, que um membro da Família Real atinge um cargo público tão importante, como deputado federal eleito por São Paulo em 2018, junto da onda levantada pela campanha presidencial de Jair Bolsonaro no então minúsculo PSL.
Por que o Brasil é um país atrasado? é uma obra de pedagogia liberal ao grande público, bem como uma denúncia contra a hipertrofia estatal e a lerdeza econômica do país. Luiz Philippe apresenta um conjunto de diagnósticos e propostas, de forma clara e instrutiva. O problema central é o modo como o Estado se sobrepõe a Sociedade, sufocando-a, criando um esquema que o autor repetidamente retrata como “totalitário”.
O texto é mais do que uma interpretação da situação contemporânea do Brasil, é a linha de raciocínio de um ator político, é um projeto de formação. Líder de um dos principais “partidos-movimento” no país, o Movimento Avança Brasil, Luiz Philippe faz de uma filosofia política a sua promessa de ação nacional. Seu livro pretende dispor sobre os estrangulamentos do estado brasileiro: o colapso do welfare state, a oligarquização de políticos e grandes empresários, os limites intransponíveis da Constituição de 1988, os dilemas do sistema presidencialista, o desequilíbrio fiscal das contas públicas, e toda sorte de ineficiência fruto do agigantamento estatal, e que levam a sociedade a uma paralisia. A descrição é uma revelação, de que o estado brasileiro já é funcionalmente alinhado a um socialismo. Dos dez maiores ganhos, segundo a Receita Federal, sete são de atuações ligadas diretamente ao setor público.
A percepção de um país “atrasado” se deve a frustração pelo seu peso estrutural, que susta suas potencialidades e não gera liberdade. As estruturas burocráticas aprisionam e as altas cargas tributárias retroalimentam o imenso aparato governamental, gerido (ou mal gerido) por uma casta de servidores bem remunerados (muito mais do que no setor privado). Este é o diagnóstico, o lamento de uma geração. Luiz Philippe é uma dessas pessoas, do flanco liberal-conservador, que estiveram no ostracismo da vida pública brasileira por mais de 30 anos. Todo o projeto da Nova República, a partir dos anos 1980, foi feito virando as costas para os alertas de liberais e conservadores, restando o caminho livre aos liberais sociais, sociais-democratas, socialistas e comunistas.
Dentre as qualidades já destacadas, há três aspectos positivos que merecem ser enfatizados sobre o livro de Luiz Philippe. Primeiro, a clareza do texto. Segundo, a franqueza de um político que traz a público o seu pensamento, trata-se de algo que todos eles deveriam ter – como o professor que deve ter minimamente uma tese, uma obra sobre aquilo que ensina. Terceiro, oferece uma espécie de manual de instruções, com teor propositivo, com movimento, com proposta sobre o que fazer.
No rol de autores da “Nova Direita” brasileira, Luiz Philippe se diferencia pelos aspectos destacados acima, mas enfrenta os mesmos problemas. O namoro entre conservadorismo e liberalismo econômico, por exemplo, é um tanto difícil de se sustentar a longo prazo. O estrito anti-estatismo pode vir a calhar pela circunstância de momento do país, mas não encontra par numa das linhagens principais do pensamento conservador brasileiro, marcada por José Bonifácio, Visconde do Uruguai, Pimenta Bueno, Visconde do Rio Branco, Barão do Rio Branco, Alberto Torres, Oliveira Vianna, e toda a família “saquarema”. A perspectiva histórica é feita de uma filosofia liberal-evolucionista, crente num progresso ascendente e irretocável da economia de mercado. A própria noção de que o Brasil precisa chegar no século XXI é fruto dessa chave interpretativa, de que o país deve alçar o mesmo patamar civilizatório dos países cêntricos, ou daqueles que cumpriram a risca as receitas dos remédios da doutrina econômica hayekiena.
A abordagem de Luiz Philippe lembra a de outro autor proeminente entre “liberais e conservadores” no Brasil, Bruno Garschagen em Pare de acreditar no governo: Por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado. Este é inclusive citado por Luiz Philippe. A diferença, contudo, é que surpreendentemente – ou lamentavelmente – o “Príncipe” acaba sendo mais cosmopolita e alienígena ao pensamento brasileiro do que Garschagen. Há um tanto de doutrina liberal econômica e muito pouco de doutrina brasileira. Pior, não há sequer um único autor brasileiro mobilizado. Todas as referencias são estrangeiras!
Parte desses deslizes não são propriamente deméritos do autor, pode-se dizer que são mais resultados da ideologia que abraça. O liberalismo tem essa forte carga cosmopolita, não encarna algo telúrico, daí porque é esquisito pensarmos num liberal não-globalista, o que pode ser o caso de Luiz Philippe. O socialismo transita entre propostas cosmopolitas e nacionais e o conservadorismo é particularmente ligado a cultura, a religião ou ao protagonismo estatal nacionais. Já o liberalismo está fadado a alçar voo que o descola dos temas mais tenros da vida cotidiana, é sempre uma projeção, levando ao descontentamento que o aproxima do… socialismo cosmopolita. Tanto que é nos costumes poderemos ver essa aproximação. A agenda liberacionista de parte da esquerda – casamento gay, aborto, direitos de minorias – pode facilmente se encontrar com a de pessoas que operam no mercado, e estão no flanco de “direita” como liberais de mercado.
De forma geral o livro vale a pena ainda como forma de se compreender uma parte da Nova Direita no Brasil, tanto quanto o encontro com a honestidade intelectual e os ensinamentos oferecidos pelo autor. Porém, não está livre de erros, alguns graves. A comparação entre constituições “interventoras” e “liberais” é imprópria, pois mesmo a Constituição Imperial de 1824 sendo tida como “liberal” – o que de fato é verdade, conforme nos ensina os grandes do pensamento brasileiro, como João Camilo de Oliveira Torres -, ela não deixava de ser flexível a ponto de ser também interventora, quando era o caso, e assim se fez em vários momentos reformistas do Brasil Império. Ademais, a Constituição de 1891 também não impediu as frequentes ações do super-presidencialismo da República Velha contra os estados fracos (praticamente todos, fora São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul), tanto que o período foi marcado por decretações de Estado de Sítio e Intervenções Federais nos estados.
Como não faz uso do pensamento brasileiro, os anacronismos são comuns nas análises históricas. Por exemplo, Luiz Philippe afirma que a “primeira Constituição brasileira abraçava nitidamente os preceitos liberais políticos vigentes na época”, e que teriam sido fruto do pensamento de John Locke. Errado, pois o liberal inglês mal aparece nos debates constitucionais, o liberalismo foi sim marcante na nossa formação, mas foi o doutrinário francês, de Benjamin Constant, especialmente. E ainda, da própria tradição liberal luso-brasileira. A “Revolução Brasileira” de 1822 é uma forma de liberalização da América portuguesa contra um projeto de atraso europeu: o Brasil já nasce “avançando na tradição”, numa revolução restauradora de liberdades. Isso significa que o próprio país tem suas raízes de pensamento para a liberdade, que são muito mais importantes e fortes do que as remissões acadêmicas que se procura imputar, como projetar clássicos do liberalismo anglo-saxão dentro da história nacional. Eis o ponto que gera tamanho incômodo no leitor.
O problema do Brasil não é ser uma cópia incompleta dos modelos anglo-saxões. Seguir essa sina é um absurdo completo, e é justamente esse o risco que o texto corre em alguns momentos. Tanto que a realidade do atual momento político, a partir da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, impõe um impasse para a percepção teórica de Luiz Philippe. Pois ao considerar que o Estado de Direito reside nos Poderes independentes (Executivo, Legislativo e Judiciário), acaba caindo na ingenuidade da neutralidade liberal entre esses poderes, de que realmente podem mutuamente se anular. O que se assiste cotidianamente na cena brasileira é justamente o oposto, e mesmo outrora no funcionamento do “presidencialismo de coalisão”, o modus operandi era espúrio, comprado, corrupto. Quer dizer, a realidade faz com que a o autor tenha que morder a língua ao criticar o sistema presidencialista, pois a sustentação do plano de reformas liberal-conservador a ser emplacado pelo governo eleito em 2018 depende justamente de uma sobreposição, até mesmo de uma superação, do Presidente e seus Ministros ante o Legislativo e o Judiciário (STF), que resistem a uma harmonia com o Executivo.
O sonho do parlamentarismo está na veia dos grandes nomes do pensamento brasileiro, como Joaquim Nabuco, Afonso Arinos e Roberto Campos, ao qual Luiz Philippe acompanha, mesmo sem mencionar essa trajetória. Teoricamente não se questiona a eficácia do modelo, sobretudo porque impõe algo que é espantosamente ausente no quadro atual: maior responsabilidade aos representantes legislativos. Hoje, o Legislativo tem muito poder, mas pouquíssima responsabilidade; os deputados podem tudo, têm muito tempo livre, muitos recursos e assessores, podem se esconder atrás de seus colegas, permanecer de comissão em comissão, e pouco se importarem com a vida real que o país vive. Tudo recai sobre o Executivo. O fator “Brasília”, de isolamento, de acondicionamento demofóbico da estrutura de poder, contribui e muito para isso. Contudo, a saída mais apropriada para se pensar um reequilíbrio do poder no Brasil, pode não estar na ponta de lança do programa parlamentarista, que seria atualmente jogar o diamante aos porcos, mas sim em dividir o poder conforme o território, dando vazão a uma ideia de subsidiariedade, com maior capacidade de ação local (legal e financeira), combinado com um mecanismo de representação distrital. Essas ideias, aliás, são veiculadas no livro, e vêm sendo discutidas pelo autor em suas redes sociais e atuações parlamentares.
Luiz Ramiro
Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.
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