As consequências da eleição de 1860 devem servir de lição sobre os riscos da polarização política radical.
Os Estados Unidos se aproximam de mais uma eleição presidencial, ritual que já realizaram 58 vezes. Donald Trump concorre à reeleição, pelo partido Republicano, contra Joe Biden, pelo partido Democrata (entre outros candidatos com poucas chances). A polarização não é novidade no país, que na prática foi bipartidário desde o início. Entretanto, a opção política parece estar se incorporando mais profundamente à identidade dos americanos, de modo que o voto entusiasmado em um partido ou em outro permite prever, com alguma segurança, a opinião do eleitor sobre temas como imigração, racismo, comércio internacional, problemas climáticos, a pandemia do coronavírus e a confiabilidade dos canais de notícias.
Segundo resultados do Pew Research Center, em 2012 apenas 47% dos cidadãos americanos achavam que conflitos partidários eram muito fortes no país, enquanto que hoje são 71% os que pensam assim. Em 2019, somente 17% dos filiados ao partido republicano acreditavam que o partido democrata tinha “boas ideias”, enquanto 13% dos democratas dizia o mesmo sobre os republicanos. O alinhamento vai se tornando mais rígido: o governo Trump é aprovado hoje por 87% dos republicanos, mas por apenas 6% dos democratas, a maior diferença nesse quesito desde que essas pesquisas são feitas.
Conforme exposto no livro Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, o clima político tornou-se progressivamente mais dividido nos EUA nos últimos quinze anos, com membros do legislativo manobrando para impedir o executivo de exercitar prerrogativas historicamente estabelecidas (em 2016, por exemplo, em uma decisão inédita, o senado recusou a nomeação de um ministro da Suprema Corte pelo então presidente Obama). A percepção geral é de que esta será a eleição mais fortemente polarizada de todos os tempos — os democratas nunca teriam odiado tanto os republicanos, e vice-versa.
Só que não. A polarização atual pode até ser a mais grave dos últimos cem anos, mas o título de eleição mais tensa da história americana pertence, sem sombra de dúvida, à de 1860. O candidato vitorioso, pelo então recém-fundado partido Republicano, havia servido por três mandatos como deputado estadual em Illinois e apenas um mandato como deputado federal; saíra derrotado em duas eleições para o senado federal. Seu nome era Abraham Lincoln.
O tema que dominou aquela eleição foi a escravidão, cujo uso efetivamente dividia o país ao meio: era uma instituição quase inexistente no norte, mais urbanizado, porém predominante no sul, mais agrário. Conforme ocorria a marcha para o oeste e novos territórios eram incorporados como estados, cumpria decidir em quais regiões o trabalho escravo seria aceito e em quais seria proibido. O alinhamento dos partidos talvez surpreenda o leitor de 2020: os republicanos se opunham à expansão da escravidão, enquanto os democratas eram favoráveis. Isso não significa que os primeiros quisessem abolição — no que dependesse deles, a escravidão poderia continuar existindo nos estados onde já estava implantada. Havia abolicionistas convictos, mas a preocupação da maioria era garantir que a mão-de-obra a ser utilizada nos novos territórios fosse composta por homens brancos assalariados.
A divisão sobre o assunto era tão profunda que aconteceram na prática duas eleições, uma no norte e outra no sul. O partido democrata rachou e lançou dois candidatos, Stephen Douglas no norte e John Breckinridge no sul. Em oposição a eles concorriam Lincoln, no norte, e John Bell, no sul. Os resultados refletiram a polarização: Lincoln teve 40% do voto popular e venceu em 18 estados, todos os do norte; Breckinridge teve 18% dos votos e venceu em 11 estados, todos no sul; Douglas teve 30% do voto popular mas ficou em primeiro em apenas um estado, enquanto Bell teve 12% dos votos e levou 3 estados.
A campanha eleitoral foi pesada. Segundo os democratas, os eleitores que quisessem “um partido que diz que um negro é melhor que um irlandês” ou estivessem dispostos a “dividir seu patrimônio com os negros” deveriam votar nos republicanos. O jornal New York Herald alertou que, se os republicanos vencessem, aconteceria o “cruzamento dos africanos com as belas filhas das raças anglo-saxã, celta e teutônica”. Boa parte dos sulistas via uma vitória republicana como uma grave ameaça. Um jornal na Geórgia escreveu: “Que o [rio] Potomac se tinja no rubro da carnificina, que a Avenida Pensilvânia se encha de corpos dilacerados [mas] o sul jamais se submeterá à humilhação e à degradação da presidência de Abraham Lincoln”.
Imediatamente após o resultado da votação, antes mesmo que o novo presidente tomasse posse do cargo, os estados de Carolina do Sul, Mississipi, Flórida, Alabama, Geórgia, Luisiana e Texas decidiram pela secessão, ou seja, declararam não fazer mais parte dos Estados Unidos. Em seu lugar, criaram os Estados Confederados. Alguns meses mais tarde, os estados de Tennessee, Arkansas, Carolina do Norte e parte da Virgínia se uniram a eles.
A secessão levou a uma guerra civil que os dois lados achavam que seria rápida. O jornal Chicago Tribune previu que a guerra terminaria “em dois ou três meses”, o New York Times arriscou “trinta dias”. Na verdade, a reunificação dos Estados Unidos só foi possível depois de cinco anos de luta fratricida, ao longo da qual mais de meio milhão de pessoas morreram.
Em 1865, uma emenda constitucional aboliu oficialmente a escravidão em todo o país. O processo de reintegração assistiu à ocupação militar do sul, ao surgimento da Ku Klux Klan e à criação de leis e regulações estaduais abertamente racistas (a igualdade de direitos civis para os negros ainda demoraria mais algumas décadas).
As consequências da eleição de 1860 devem servir de lição sobre os riscos da polarização política radical, não só nos Estados Unidos. A discordância, o debate, a liberdade de expressão são o oxigênio da democracia. A demonização do outro, a cegueira ideológica, a intransigência feroz são seu veneno. Como vaticinou Lincoln em famoso discurso (citando Mateus, 12:25), “Uma casa dividida contra si mesma não subsistirá”.
Marcel Novaes
Professor, autor de Do czarismo ao comunismo (Três Estrelas, 2017) e O grande experimento (Record, 2016), sobre a revolução americana.
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