Jornalismo digno do nome não cede palanque para multiplicar teses anticientíficas, antidemocráticas ou discriminatórias.
Neste mês, a Revista Amálgama propõe um debate sobre imprensa, em que refletiremos eu e Lucas Baqueiro a partir de nossas impressões distintas e antagônicas sobre o affair — querela? Debate? Sinceramente, a qualificação importa pouco— entre Leandro Narloch e Thiago Amparo. A leitura dos textos – seja a primeira coluna, a primeira resposta, a intervenção de Demétrio Magnoli a favor do primeiro, a intervenção dos historiadores a favor do segundo, a prudente coluna de Antonio Risério e a intervenção dispensável do ombudsman da Folha, bem como a segunda coluna e a segunda resposta – são recomendáveis, até para que se conheçam os argumentos e os pseudoargumentos em contraste. Da minha parte, meus argumentos independem dos textos, mas com eles dialogam.
Escrevo depois que o Prêmio Nobel da Paz de 2021 foi entregue a dois jornalistas, Maria Ressa e Dmitri Muratov, que escrevem, respectivamente, nos regimes iliberais das Filipinas e da Rússia, em condições mais que adversas, em aberta oposição a líderes políticos com práticas e pretensões ditatoriais. O elemento simbólico do Prêmio – o reconhecimento da importância da imprensa – não passou batido, especialmente no Brasil sob Bolsonaro: quem acompanhou a cobertura jornalística do Nobel da Paz nesse ano poderia ter pensado que o prêmio foi dado às Organizações Globo ou ao Grupo Folha, tamanhos o júbilo e a autocongratulação.
Falo de imprensa, sempre, sem qualificações: falar de “imprensa livre” é redundância, porque não pode haver outra imprensa senão a livre – sem liberdade editorial, não existe imprensa, mas sim relações públicas sob tutela do Estado. O mesmo vale em relação a “imprensa de oposição”, porque imprensa de situação é o Ministério da Verdade, ou, nas palavras de Millôr, armazém de secos e molhados, não imprensa digna do nome.
É bem verdade que temos ótimas e ótimos jornalistas em atividade. Num fôlego, é possível citar Renata Lo Prete, Miriam Leitão, Malu Gaspar, Patrícia Campos Mello e Andreia Sadi (e não há qualquer coincidência no fato de que são todas mulheres e extremamente competentes no que fazem). Vale dizer que o recorte não inclui os colunistas de Opinião, que não são jornalistas propriamente, mas que também têm um papel importante a desempenhar. Só que, se temos profissionais de imprensa competentes e de valor, os meios que os veiculam, as sociedades empresárias que empreendem no campo do jornalismo, ainda engatinham e patinam na Era da Informação, que também é a Era das Fake News, do Firehosing e da Desinformação.
A Internet representou o Segundo Advento da Imprensa. Se a invenção de Johannes Gutenberg abriu a Era da Ilustração, facilitou como nunca antes a difusão dos livros e dos jornais, fez popularizar os textos escritos por meio da reprodução simples e em massa, a Internet rompeu os dois últimos limites à circulação das informações: por um lado, tornou quase livre de custos a publicação de quaisquer opiniões, em sites e blogs e em redes sociais, assim rompendo com o impeditivo estrutural que sustentava jornais e editoras; a outro, eliminou o controle, o filtro, que tais conglomerados empresariais exerciam justamente por deterem os meios de produção e de circulação das notícias. Qualquer um com acesso à Internet (inclusive o autor destas linhas) pode publicar suas ideias, boas ou ruins, e fazê-lo quando quiser. O “mercado público das ideias”, espaço caro aos liberais da linha de Stuart Mill (como é o meu caso), está finalmente aberto a todos, sem intermediários. Basta ter o desejo de escrever e conseguir arrecadar visualizações.
O outro lado da moeda, da ampla acessibilidade ao debate público, já é assaz conhecido a essa altura. A profusão das fake news, das teorias da conspiração, a formação de nichos específicos e fechados de comunicação (um fenômeno que se tem denominado de “fechamento epistêmico”, em que subculturas, como o QAnon, os terraplanistas ou os antivaxxers, fazem surgir uma realidade alternativa, desvinculada da realidade fenomênica na qual nós outros habitamos), a tribalização da comunicação via algoritmos, em que só o que atende ao nosso viés de confirmação nos é mostrado, e o que contesta nossas certezas é removido de vista, até culminar no atual estado de coisas político, que depende da polarização e do ódio recíproco para continuar existindo. Se sempre foi possível ao portador de sofrimento mental que fosse à praça, subisse num palanque e postulasse suas patologias ao público, como também era possível aos mitômanos espalhar falsas noções para tapear o vulgo, em troca de lucro e de renome, isso era contido pelo pequeno alcance de suas mensagens, difundidas de ouvido em ouvido. Hoje, a tecnologia oferece o megafone, de escala global, e quem quiser fazer uso dele, responsável ou não, pode fazê-lo.
Orson Welles, autor de uma das primeiras intervenções artísticas envolvendo notícias falsas, ao recitar “A Guerra dos Mundos” no rádio, não tem culpa nesse processo. Culpados fomos nós, que não nos atentamos ao exemplo, do início do século passado, e plenamente aplicável aos dias de hoje. Nem tampouco tem culpa Stephen Colbert, que, ao satirizar os comentaristas políticos de extrema-direita, de forma humorística, estava mostrando que as estratégias de guerrilha comunicacional da alt-right eram tudo, menos uma piada. Pouca gente levou a sério, e deu em Donald Trump.
Não se pretende, por ser obviamente impossível, propor que se cesse o acesso universal à comunicação instantânea de massa. O avanço tecnológico veio para ficar, é um fato a ser incorporado pela sociedade, não revertido. Não há como por o gênio de volta na lâmpada, nem isso seria desejável. Quanto mais restritivo o país, maior a importância da ampla acessibilidade à informação – basta ver o uso das redes sociais no Irã, ou em Hong Kong, ou na Birmânia/Myanmar, ou em Cuba. Contudo, há uma razão pela qual se busca a informação precisa, verídica, correta nas páginas do The New York Times, e não em comunidades do Reddit: a verificação e checagem de fatos, bem como a curadoria/curatela editorial.
A checagem de fatos, matéria-prima básica do jornalismo profissional, é raison d’être de sua sobrevivência atual. Qualquer um pode dar uma informação; se ela procede, isso depende de trabalho de apuração, de verificação com fontes, de documentação. Nunca foi um antídoto contra a barriga, a notícia que, por defeito de coleta, se mostrou imprecisa; mas é bem superior ao processo free-style que pauta a veiculação e a difusão de rumores pela Internet. Empresas jornalísticas devem viver pela checagem de fatos e tê-la em precedência superior sobre todas as coisas, até mesmo sobre a urgência da novidade. E é quando falham os mecanismos internos de checagem de fatos que as empresas devem sofrer suas maiores críticas. Por exemplo, a própria Folha de São Paulo, antes mesmo da recente polêmica, em julho de 2021, envolveu-se num erro grave de interpretação de dados, veiculando matéria segundo a qual pessoas teriam sido vacinadas com doses expiradas da vacina contra a COVID-19 produzida pela AstraZeneca/Fiocruz. Essa matéria, sozinha, fez mais para lesar as credenciais jornalísticas do veículo do que todos os artigos da polêmica sobre as “sinhás pretas”, somados.
Quem de fato explora as fake news como prática cotidiana e estratégia política, como é o caso das correntes de extrema-direita no Brasil e no exterior, toma o erro jornalístico como evidência de que tudo o que se veicula na mídia tradicional é falso e possui viés “anticonservador”. Não é verdade, claro, mas o erro da imprensa séria dá munição aos arrivistas e aos caluniadores, devendo ser evitado a todo custo.
O desafio, portanto, é equilibrar o desejo de dar a notícia em primeira mão, de atrair olhares e cliques (e, portanto, receitas publicitárias, vendas unitárias e assinaturas) com o vagar necessário à apuração correta e prudente dos fatos (em caso de dúvida, conferir “Todos os Homens do Presidente”, livro ou filme). Nem sempre as empresas jornalísticas acertam nessa sintonia fina. E sempre que pecam a favor do sensacionalismo, da informação bombástica que se mostra inverídica, dão munição a quem quer vê-los destruídos. Jornalismo marrom vende, jornalismo marrom existe há séculos, mas nunca se pagou um preço tão caro pelo lucro momentâneo e inconsequente de uns poucos. Notícias falsas não são novidade: nova é a distinção entre quem as têm como erro e exceção, e quem as emprega como método. A busca pelo sensacionalismo é irmã da atual “polêmica” entre os colunistas da Folha: para quem visa a obter mais cliques e mais discussões, a controvérsia caiu como uma luva. Troca-se o bom senso no debate público pelas métricas de SEO e de acessos individuais. Os donos do jornal agradecem, a democracia que lute.
Quanto às páginas de opinião, que são, ao fim e ao cabo, o assunto em debate, bons veículos de imprensa adotam dois critérios: primeiro, uma linha editorial que pode ser conhecida a priori, e que não macula – pelo contrário, clarifica – as decisões de publicação. A revista Economist tem posição política; o The New York Times tem posição política. O que os difere, por exemplo, da Fox News ou da Jovem Pan é o tratamento que adotam para expor notícias e opiniões. Estes últimos veículos, obviamente, têm posição política, e é ela, sem respeito aos fatos, que pauta tudo o que é dito ou exibido pelo meio de comunicação. Portanto, são imprestáveis como fontes de informação, porque contaminam tudo o que tocam com seu viés editorial. Viés editorial deve servir como um mapa, não como um destino. É ele quem permite que o leitor entenda de onde de parte, as premissas e juízos de valor, para então formular suas próprias conclusões.
A par da linha editorial clara e conhecida ex ante, o veículo deve, sempre que possível, abrir espaço ao contraditório, às opiniões que traduzem todo o espectro do discurso público. Esse, aliás, é outro defeito dos veículos de comunicação partidarizados, como a Jovem Pan: neles, a exposição do contraditório possui o papel de vexar as opiniões discordantes, ou de expô-los ao ridículo ou às agressões. É pressuposto de um debate saudável a consideração do diferente com respeito, não como espantalho ou como aberração. Mas se faz preciso, também, ter a noção exata do que é diferente e do que é aberração. Quando Thiago Amparo fala na extensão da corda do pluralismo de opiniões, é a isto que se refere: quando se estende demais, oferece-se abrigo a posicionamentos que, objetivamente falando, nada adicionam ao debate público, representando a polêmica pela polêmica.
Para que não se fique no exemplo local, cumpre mencionar um episódio que envolveu o melhor jornal do planeta, o The New York Times, no ano passado. Em meio aos protestos pela morte de George Floyd, o paper of record publicou uma coluna de opinião, escrita pelo Senador Republicano Tom Cotton, em que ele defendia o uso de força militar contra os manifestantes nas ruas, segundo ele “radicais de esquerda como a antifa”. A coluna foi publicada e imediatamente causou revolta não apenas nos leitores, mas internamente no próprio jornal, culminando com a saída do editor responsável depois de se apurar que o título foi construção do jornal, bem como outras partes do artigo, que traziam alegações no mínimo questionáveis, não foram revistas propriamente. Lá, o episódio rendeu reclamações públicas por parte dos colaboradores negros do NYT, e houve a responsabilização dos envolvidos. Aqui, e especialmente após a coluna do ombudsman da Folha minimizando a situação, não há qualquer perspectiva de que abordagem semelhante seja adotada. Quem, nas páginas da Folha, tem dado uma aula de como a imprensa precisa denunciar os extremistas é Lúcia Guimarães, que é outra grande jornalista, escrevendo para um veículo que não atenta para suas nítidas recomendações.
O exemplo do artigo do Senador Cotton reforça a crença de que é preciso repensar a prática, comum e adotada internacionalmente, de veicular colunas de opinião com o aviso de que estas não traduzem a opinião do veículo em que são publicadas. Se, de fato, isso é verdade, nem deveriam estar publicadas naquele espaço para início de conversa. O que se veicula num jornal, concordando-se ou não, é de responsabilidade daquele que divulga e propala, não apenas do autor. É a curadoria/curatela do conselho editorial, sua responsabilidade maior, que diferencia um veículo respeitável das caixas de comentários de qualquer portal de Internet. Quem empunha o megafone, e porque o empunha, faz toda diferença no momento em que estamos.
A saudável predisposição em romper a bolha, em expor os leitores de um veículo de imprensa a opiniões que desafiem seus pontos de vista, é também o papel dos bons meios de comunicação. Todos os veículos renomados internacionalmente, mesmo aqueles (melhor, especialmente aqueles) que possuem uma linha editorial clara, exercitam esse papel com frequência e com graus variáveis de sucesso. Contudo, não se pode confundir a vontade de injetar pluralidade na discussão com a falta de critérios. O “doisladismo” é uma doença própria da era, que confunde o aceitável e o inaceitável, ignorando conceitos como o da Janela de Overton – e se a mídia tradicional não entende como é e como funciona, pode ter absoluta certeza de que a extrema-direita domina essa noção muito bem. O ponto médio entre a posição antivax e as recomendações científicas não pode ser o ceticismo entre os dois lados, porque esses não se equivalem nem sem compensam. Jornalismo digno do nome não cede palanque ou oferece seu espaço para multiplicar teses anticientíficas, antidemocráticas ou discriminatórias. Por essa linha, mais uma vez falha a Folha, que ainda não exigiu retratação, ou mesmo tomou de volta para si o espaço que cede, semanalmente, a colunista que, sem informações científicas e em prol de uma visão ideológica e reducionista, fez a apologia da cloroquina nas páginas do jornal mais importante do País. Quando se escrever a história do nosso período trágico, como os historiadores lerão essa coluna, na Folha? A pretensão de diversidade pode abrigar a propagação de falsas curas? Qual o preço, em moeda de credibilidade, que se pretende pagar pela dita diversidade na opinião?
O problema não é de fácil solução. Certamente passa longe das soluções simplórias ou estatais, como, por exemplo, o natimorto plano de criar um Conselho Nacional de Jornalismo para “supervisionar” as editorias e salas de produção, ou a estratégia bolivariana-bolsonarista (o bipartidarismo, na América Latina, é apenas na desgraça) de ameaçar as concessões de rádio e TV dos meios de comunicação percebidos como oposicionistas, ideias zumbis que começam a dar as caras conforme se aproxima a eleição de 2022. Como liberal, acredito que a solução adequada passa pela escolha: escolher não comprar, não assinar, não consumir os meios de comunicação que falham em desempenhar corretamente o papel de curadoria do mercado livre de ideias. A meu ver, a Folha de São Paulo, não só por ceder seu megafone a Leandro Narloch e a Hélio Beltrão, mas também por isso, tem abdicado de sua imensa responsabilidade no debate público. A solução passa por uma mudança de rumos, ou pelo cancelamento da assinatura. Temo que não serei o único a tomar essa atitude.
Marcelo Sarsur
Doutor em Direito pela UFMG. Professor nos cursos de Pós-Graduação (lato sensu) em Direito Ambiental e em Direito Minerário do Centro de Estudos em Direito e Negócios. Diretor da Sociedade Brasileira de Bioética - Regional Minas Gerais (em constituição) e Coordenador da Setorial Justiça e Segurança Pública do movimento Livres.
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