O Brasil está de chico

por Bete Barros (20/10/2021)

Quais são os custos com as doenças decorrentes da falta de higiene íntima? Qual é o impacto da pobreza menstrual na economia?

A falta de recursos financeiros para comprar absorventes é uma película que encobre uma enorme estrutura de ignorância e problemas sociais que precisa ser desintegrada.

Pobreza menstrual é um conceito singular, multidimensional e transdisciplinar que exige estratégias complexas e multissetoriais, com ações educacionais, na saúde pública e de saneamento básico. Não se trata apenas de falta de absorvente para usar. Trata-se, muito mais, da pobreza cultural que fere direitos constitucionais como a dignidade humana, o direito de ir e vir, a erradicação da pobreza e da marginalização. Normalizá-la é também considerar adequada a desigualdade social, o desrespeito à integridade física e moral da mulher presa, e, sobretudo, fechar os olhos para a educação e apoio à mulher.

O tabu e a falta de acesso ao saneamento básico e a produtos de higiene afeta a milhares de adolescentes em todo mundo. Por consequência, correm riscos de saúde, abandonam a escola e passam a ter suas possibilidades de desenvolvimento limitadas. Impacta, sobretudo, na economia e na produtividade, terreno onde o Brasil não vai bem.

É surreal que algo biológico e natural como a menstruação seja um tabu danoso. Não é uma exclusividade do Brasil a tacanhez. No Reino Unido, uma pesquisa do Plan International UK revela que 48% das meninas sentem vergonha ao menstruar. Mulheres são proibidas de rezar ou frequentar mesquitas durante o período menstrual no Níger e em Burkina Faso (UNICEF, 2013). Na Índia, 71% das meninas nunca ouviram falar em sangramento menstrual até a menarca, conforme dados da DASRA, de 2015. Já na Colômbia, 45% das garotas desconhecem a origem do sangue menstrual e 20% o considera sujo (UNICEF, 2016).

Em 2016, fez-se uma pesquisa com 90 mil pessoas em 190 países do globo a respeito de percepções sobre o período menstrual no mundo. Mais de 5.000 eufemismos foram descobertos para o termo referente à menstruação. São muitas palavras utilizadas para amenizar o desconforto de mencionar a menstruação: estar de chico, estar naqueles dias, regras, com visita, coisas de mulher, sinal vermelho, estar descendo, monstruação, estar chovendo, virar isca para tubarão, são alguns dos termos utilizados para evitar usar a palavra-tabu.

O Brasil está de chico! A falta de conhecimento e preconceito sobre o assunto ainda é muito grande. Basta navegar alguns minutos pelas redes sociais para verificar a quantidade de questões e comentários bizarros, como a seguinte pérola:

“As mulheres pobres sempre menstruaram e nunca nenhum governo tratou isso. Por que só agora querem resolver esse problema?”

Oras, o que não é dito, não é sentido e nem tratado. O documentário Período: o estigma da menstruação, vencedor do Oscar em 2019 na categoria de melhor documentário de curta-metragem, trouxe este debate à sociedade contemporânea. O tema promoveu uma rede de apoio em diversos países, além da isenção em tributos sobre produtos de higiene menstrual na Alemanha, Canadá, Quênia e Índia, ou redução de encargos na França, Inglaterra e Luxemburgo, e mesmo o acesso gratuito e universal a tais produtos na Escócia.

Mas, é claro que o autor de piadas e comentários desdenhosos sobre a pobreza menstrual, ou quem vira publicamente a cara para o assunto, não imagina que também faz parte do cenário de pobreza por sua ignorância sobre o assunto. Dentre estes, a pérola de que “basta tomar anticoncepcional direto que não menstrua”. É o tipo de orientação que só um médico poderia fazer, mas sequer existem estudos sobre a supressão em massa da menstruação e existe, mesmo, um problema de ordem cultural intrínseco na questão.

Outro comentário muito comum, quando da emergência do tema, foi: “isso é mi-mi-mi, pois no meu tempo eu usava paninho”. O problema é que os tempos são outros. Naquele tempo, também não existia água canalizada, cozinhava-se à lenha, a mortalidade infantil era regra, nem havia propriamente um Estado buscando cumprir sua função social. Inadmissível é que em plena era moderna as mulheres tenham de normalizar a precariedade e falta de higiene usando paninhos, trapos, tecidos sujos e contaminados, jornais, papelão, palha de milho, papel higiênico e miolo de pão. O uso dessas coisas no lugar do absorvente, manejando inadequadamente a menstruação, causa problemas à saúde sérios como alergia, irritação da pele e mucosas, infecções urogenitais como cistite e candidíase, além da Síndrome do Choque Tóxico, que leva à morte. Sem falar, aliás, no dano emocional gerado.

27 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza e tentam sobreviver com uma renda mensal de até R$246, segundo levantamento divulgado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em março deste ano. Quando a pessoa não tem dinheiro para comprar comida, comprar absorvente é artigo de luxo.  Conforme o estudo “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, mais de 4 milhões de estudantes frequentam colégios com estrutura deficiente de higiene, como banheiros sem condições de uso, sem pias ou lavatórios, papel higiênico e sabão. Aproximadamente 200 mil não contam com nenhum item de higiene básica no ambiente escolar; 713 mil meninas não têm acesso a nenhum banheiro (com chuveiro e sanitário) em suas casas. E outras 632 mil meninas vivem sem sequer um banheiro de uso comum no terreno ou propriedade. A realidade é que essas pessoas não possuem os recursos necessários nem para os cuidados básicos com a sua saúde menstrual.

Mas, não, não importa. Para esse tipo de gente, o que prevalece são frases como “não existe almoço grátis: quer absorventes, vai trabalhar”. Trata-se do tipo de pessoa mesquinha que conta clipes de papel e não consegue imaginar o cenário grande. Quais são os custos do erário com as doenças decorrentes da falta de higiene íntima? Qual é o impacto da pobreza menstrual na economia? É fácil entender que é muito maior do que o da distribuição de absorventes.

No Brasil, uma em cada quatro mulheres que menstruam não tem acesso a itens básicos de higiene durante o ciclo menstrual. São meninas estudantes, mulheres em situação de rua, mulheres encarceradas e em condição de extrema pobreza que precisam decidir se vão comprar comida ou absorventes.

Isso é apenas uma amostra da insensatez de algumas pessoas. Também há muitos relatos de mulheres dizendo que tiveram problemas ginecológicos por usar sobras de panos, que vazava tudo e era horrível, que somente após começarem a trabalhar com 14, 16 anos conseguiram comprar o primeiro pacote de absorventes. Outros relatos, por exemplo, narram o constrangimento vivenciado por muitas meninas que só usavam absorventes quando ganhavam de alguma amiga na escola. O constrangimento vivenciado pela pobreza menstrual é desumano.

Tratar as causas da pobreza menstrual é um investimento que produzirá resultados positivos para a sociedade. O estado poderá realocar recursos poupados com a ação preventiva de higiene íntima para tratamentos de outras doenças. O período menstrual mais higiênico resulta numa saúde íntima mais completa. Mulheres com saúde, dignidade, preparadas para o mercado de trabalho são mais seguras e geram riqueza e prosperidade.

A mulher sofre calada e é preciso atenção para não banalizar a desgraça. Dados sobre a violência da mulher mostram que 52% das mulheres que sofreram violência doméstica não fizeram nada a respeito do que sofreram. Se não falam sobre violência vividas, por vergonha, medo e constrangimento, vão falar sobre a falta absorventes? É óbvio que não. As mulheres são criadas para esconder que estão menstruadas, esconder absorventes, não falar sobre o assunto. Sentem vergonha, exclusão. A educação é importante para reforçar a normalidade que é o período menstrual.

Combater as causas da pobreza menstrual, enquanto política de Estado, além de prevenir doenças, diminuir a evasão escolar e gerar impacto positivo à economia, também positivamente impacta em ao menos cinco indicadores brasileiros dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 2030) traçados pela Organização das Nações Unidas. Cumprem, por exemplo, os objetivos de boa saúde e bem estar (objetivo 3); educação de qualidade (objetivo 4); igualdade de gênero (objetivo 5); água potável e saneamento (objetivo 6); e, emprego decente e crescimento econômico (objetivo 8). Indicadores melhores significam uma imagem internacional melhor para o país.

As propostas e projetos coletivos em prol da saúde menstrual no Brasil são muitas e de diversos setores como organizações não-governamentais, agências governamentais, empresas do setor privado, mídia e a sociedade. Contudo, precisamos de uma política pública unificada do Estado para que haja controle, transparência e equidade nas ações. Mesmo com o veto presidencial, a pressão política é grande e algumas cidades e estados já sancionaram ou tramitam em suas câmaras alguma política contra a pobreza menstrual, distribuindo absorventes, kits higiênicos e programas educativos. Somente o estado de Mato Grosso, em um mau exemplo, vetou o projeto de combate à pobreza menstrual.

As ações também devem englobar apoio, pois a pobreza menstrual quando vivenciada desde a infância pode resultar em sofrimentos emocionais que dificultam o desenvolvimento de uma mulher adulta com seus potenciais plenamente explorados. É esperado também atividades educativas para que as meninas aprendam sobre seu corpo e obtenham entendimentos básicos do ciclo menstrual, desmistificando tabus e reduzindo o constrangimento e o estresse. E, claro, investimentos em infraestrutura e acesso aos produtos menstruais.

Pela comoção que o assunto gerou, a sociedade espera que o Estado considere melhor seus gastos. Como ato administrativo é importante considerar algumas teorias. As prioridades coletivas são bem parecidas com as prioridades individuais na pirâmide hierárquica de Maslow. As necessidades fisiológicas são a base da pirâmide e as primeiras a serem atendidas. Quando as pessoas não têm as necessidades básicas atendidas elas terão seu emocional abalado, afetando a produtividade profissional e o desenvolvimento intelectual. O gestor público deve buscar primeiramente atender as necessidades fisiológicas e de segurança da população para somente depois buscar o atendimento às necessidades menos urgentes.

E finalmente, o tema deve ser tratado com a seriedade e respeito que merece. Não se trata de absorvente. Se trata de saúde, segurança, liberdade e futuro.

Bete Barros

Empreendedora. Graduada em Administração de Empresas pela FEI, Especialista em Marketing Internacional pela Universidade Metodista de São Paulo.

Bete Barros
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