Os moradores da favela não são pessoas ignorantes, aguardando que um rico esclarecido lhes estenda a mão. São cidadãos altivos, capazes de tomar decisões sozinhos.
O que segue é um trecho de O Estado eficaz: Respostas do liberalismo para a desigualdade e a miséria (Maquinaria Sankto, 2021).
Experimente pesquisar por “Desigualdade no Brasil” no Google Imagens. Por favor, eu espero.
Pronto?
As primeiras fotografias que aparecem provavelmente são do edifício Penthouse, no bairro do Morumbi, em São Paulo. É provável que você tenha visto essa imagem em seu livro de geografia lá pelo sexto ano: de um lado, um edifício luxuoso, em que cada apartamento tem uma piscina própria na varanda. Do outro lado, um aglomerado de casas pequenas distribuídas em ruas estreitas. É a favela de Paraisópolis.
A favela de Paraisópolis começou a surgir nos anos 1960, justamente quando o bairro do Morumbi ganhava corpo com a construção de mansões, prédios, o estádio do São Paulo Futebol Clube e o Hospital Albert Einstein. O desenvolvimento de um bairro de alto padrão aumentou a demanda por operários e, logo depois, empregadas domésticas, vigias, motoristas, jardineiros. Alguns dos migrantes nordestinos que se mudaram para São Paulo enxergaram essa oportunidade. Rapidamente, a notícia se espalhou, e Paraisópolis virou um polo de atração. Essas pessoas acreditavam que seria uma boa ideia ocupar o terreno de geografia acidentada e sem infraestrutura, mas que ficava convenientemente próximo do trabalho. A favela nasceu sobre áreas particulares, em um espaço originalmente planejado para virar um loteamento para a classe média, que nunca saiu do papel. Como em outras partes do país, a burocracia estatal impediu um uso mais ordenado do solo. Favelas como Paraisópolis proliferaram nesse vácuo.
A imagem chocante da favela ao lado do edifício luxuoso é fruto desta contradição: a favela existe porque o bairro rico existe. Se o bairro rico não existisse, a vida do favelado talvez fosse ainda pior. Ao mesmo tempo, não é adequado dizer que os moradores de Paraisópolis devam se contentar com o que têm.
Um dos muitos nordestinos a fazer a migração para o estado de São Paulo em meados do século XX se transformou em presidente da República. A casa onde Luiz Inácio Lula da Silva nasceu fica no atual município de Caetés, em Pernambuco. É uma típica cidade do semiárido. E, comparada a ela, Paraisópolis se sobressai.
A comunidade paulistana tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,639, contra 0,522 de Caetés. Isso significa que a qualidade de vida em Paraisópolis é consideravelmente maior. Se fosse um município de Pernambuco, aliás, Paraisópolis ficaria em 30º lugar entre as 185 cidades do estado nesse quesito. Na verdade, a renda média de Paraisópolis está acima da maior parte dos municípios brasileiros, inclusive de centenas de cidades em estados ricos como São Paulo, Santa Catarina e Paraná.
A infraestrutura também é superior na favela de São Paulo: em Paraisópolis, 88% das casas têm abastecimento de água e 98% têm energia elétrica – muito acima de Caetés e praticamente nos mesmos índices da média nacional.
Para além dos números, é fácil constatar que Paraisópolis, com todos os seus problemas, é uma comunidade muito mais rica do que as terras natais de seus fundadores. Graças ao Google Street View, qualquer um pode fazer um passeio virtual pelas ruas da favela. A primeira surpresa para os desavisados talvez seja a vitalidade da economia local. Quem anda pelas ruas de Paraisópolis vai encontrar um comércio diversificado. O bairro tem lojas de autopeças, assistência técnica de computador, escritório odontológico. Creche particular. Óticas Carol. Uma pizzaria e paninaria. Corretora de imóveis. Autoescola. Banco Santander. Casas Bahia. Cultura
Inglesa. O sushi-bar Temaki de Ouro. Banco do Brasil.
Como a lista acima evidencia, os moradores de Paraisópolis sabem bem que a forma de progredir na vida é por meio do trabalho e do empreendedorismo. E, embora possam necessitar temporariamente da assistência social, o que eles mais precisam é de um sistema legal eficiente, que lhes garanta o direito à propriedade que eles conquistaram pelo próprio trabalho.
Paraisópolis não é, nem de longe, o bairro dos sonhos. Em muitos aspectos, a condição em que aquelas pessoas vivem está longe da ideal. Mas, para aquelas famílias, se mudar para lá foi um passo importante em uma jornada contínua: a jornada humana pela melhoria da sua condição. Os moradores que vieram do Nordeste não vieram em busca de assistência do governo, mas de oportunidades de emprego. O caminho para que eles continuem progredindo é fornecer os meios para que eles possam trabalhar livremente.
É preciso reconhecer, por outro lado, que a foto célebre do prédio luxuoso ao lado de Paraisópolis incomoda. E incomoda porque ela fere nosso senso básico de justiça. Aqueles que exibem a fotografia do edifício Penthouse à exaustão apostam em um instinto básico do ser humano: nós somos muito bons em identificar diferenças. Esse parece ser um traço instintivo. Até mesmo macacos-prego se revoltam quando notam uma injustiça na distribuição de frutas. Mas a solução não é simples. Não basta retirar a renda dos moradores do Penthouse e distribuí-la entre os moradores de Paraisópolis.
A riqueza não é um jogo de soma zero. Se os ricos do prédio com piscina na varanda desaparecessem, a vida dos moradores de Paraisópolis não melhoraria.
Os moradores da favela não são pessoas ignorantes, à beira da morte, aguardando que um rico esclarecido lhes estenda a mão. São cidadãos altivos, capazes de tomar decisões sozinhos – e que demonstraram isso ao melhorarem sua condição de vida por esforço próprio. A liberdade é uma característica inerente ao ser humano.
A forma mais eficaz de destruir a dignidade de uma pessoa é anulando sua liberdade. E a forma mais eficaz de anular a liberdade de alguém é tratá-la o tempo todo como alguém incapaz de agir livremente.
Um Estado eficaz deve estar pronto para, sempre que preciso, agir em situações emergenciais que exijam uma resposta rápida. Também é preciso ter uma atenção especial com os brasileiros na extrema pobreza. Temos o dever moral de criar as condições para que a miséria seja erradicada de vez. O problema é que algumas das fórmulas apresentadas ao longo da história acabam tornando o problema pior. É preciso um olhar honesto sobre os possíveis caminhos para a redução da pobreza e da desigualdade.
Gabriel de Arruda Castro
Jornalista, mestre em Política e em Administração Pública.
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