Nos últimos 15 anos, experimentamos o endurecimento das leis penais. Mas, por que tantas pessoas continuam entrando para o crime?
Todos nós, de alguma forma, temos verdades prontas e acabadas sobre as causas da criminalidade. De um lado, conservadores falam sobre as escolhas que levam ao crime e a chamada impunidade brasileira. De outro, setores progressistas, até certo ponto, romantizam a ideia da criminalidade como se todos que seguem este caminho sejam pessoas sem oportunidade, com relativa consciência social, como retratado no filme “Tropa de Elite”.
Penso que o fenômeno da criminalidade não guarda explicações e respostas fáceis e corretas em nenhum dos lados. Dentre as muitas reflexões possíveis para este fenômeno tão complexo e atual, escolhi a que me parece uma das principais: a do seriado “Round 6”, o maior sucesso da história da Netflix
Na série que virou estrondoso fenômeno da Netflix, 455¹ pessoas, com as mais variadas histórias de vida, são recrutadas, em diversos pontos da Coréia do Sul, para um jogo em que participariam em busca de um prêmio milionário a ser pago se vencerem todos os 6 desafios. Todas as pessoas recrutadas para o jogo mortal possuem duas coisas em comum: são pessoas com pesadas dívidas ou vidas arruinadas e decidiram voluntariamente participar.
Ao chegarem ao local do jogo, lhes é oferecido um contrato que possui apenas três cláusulas: o jogo dura seis rounds e não pode ser interrompido; o jogador que quiser sair do jogo no meio da ação será eliminado; e, o jogo pode ser interrompido caso, em votação, a maioria decida que é hora de parar.
No primeiro jogo, os participantes jogam uma brincadeira semelhante a um jogo de estátua, chamado de “batatinha frita 1, 2, 3”. Nessa singela brincadeira mortal, 254 competidores são mortos a tiros, logo no primeiro Round. Todos, absolutamente assustados, voltam para o alojamento após o jogo. Confabulam, se desesperam com o que acabaram de ver. Até que o protagonista da série Seong Gi-Hun relembra a cláusula terceira do contrato de que todos poderiam desistir daquele jogo mortal. Realizada uma votação, por apertados 101 a 100, decidem que é hora de encerrar o jogo. A organização do jogo os libera para voltarem a viver sua vida anterior.
Evidentemente, ao retornarem ao mundo real, se deparam com tudo aquilo que abandonaram quando decidiram jogar: vidas arruinadas, fracassos pessoais e morais, pesadas dívidas, decepções e perdas familiares. Percebem, ali, que não têm para onde voltar. Surpreendentemente, ao se depararem com a vida que tinham, escolhem retornar ao jogo mortal, mesmo sabendo que podem ser os próximos a morrer, em nome de algo que consideram maior e mais relevante que os riscos: o prêmio de R$ 208 milhões de reais para o vencedor.
Ao espectador, pode parecer insano que pessoas, mesmo completamente cientes dos riscos concretos à própria vida, decidam ir adiante, em torno de algo incerto, improvável e difícil como vencer um jogo, em que a vitória resulta, necessariamente, na eliminação do outro. Mas, o que talvez o leitor nunca tenha pensado, é que é exatamente isso que acontece todos os dias no Brasil.
Para entender melhor este ponto, precisamos voltar um pouco no tempo. Um dos documentos históricos essenciais de nosso tempo, que recebeu pouquíssima atenção e interesse da sociedade, foi uma carta escrita por José Márcio Felício, conhecido por Geleião, intitulada como fundei o PCC. Na longa e decisiva missiva para a história da criminologia brasileira² Geleião conta, essencialmente, que o Primeiro Comando da Capital, hoje chamado de PCC, surgiu de um agrupamento de oito fundadores que se reuniram em torno do objetivo comum de combater as opressões e a violência no sistema carcerário.
De acordo com Geleião, a rotina de espancamentos, torturas e privações fez com que os oito fundadores decidissem se organizar para que tais arbitrariedades do Estado cessassem. Lançou-se ali uma ideia. E, como toda a ideia lançada, encontra ouvidos e nunca mais retorna ao lugar de onde surgiu.
Mas, se a história do PCC foi marcada como uma organização inicial de encarcerados se organizando para combater as violações do sistema prisional, há uma outra vertente de pensamento, liderada por Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, que se tornou hegemônica dentro da organização, de transformar o PCC em uma organização gigantesca, responsável por exportar centenas de toneladas de drogas para várias partes do mundo. Ou seja, a dimensão subjetiva, de lutar por melhores condições do sistema carcerário, foi gradativamente cedendo espaço a uma lógica comercial de transformar o PCC em uma organização que proporciona estrondosos lucros a seus participantes.
Embora esteja no radar de todas as polícias do País o PCC tem, de acordo com investigações do Ministério Público do Estado de São Paulo, cerca de 112 mil membros na ativa, encarcerados, ou nas ruas. Devemos, portanto, perguntar: como uma organização fundada em um pátio de uma penitenciária, por oito pessoas, se tornou uma organização tão grande e temida, com 112 mil membros ativos? O que levam essas pessoas a se associarem, ciente de todos os riscos inerentes a essa escolha?
Curiosamente, as regras do Primeiro Comando da Capital são, na essência, as mesmas do jogo mortal de ‘Round 6’. O Estatuto do PCC estabelece diversos princípios para seus integrantes, que caberiam muitas laudas de reflexão, mas o ponto principal é que, diferentemente do que diz o senso comum, a participação no PCC é absolutamente voluntária. O Estatuto do PCC é fornecido aos futuros membros para que entendam exatamente quais são as “regras do jogo”. Em geral, é comum pensarmos que pessoas que entram nessas organizações criminosas não podem dela sair. Mas, ao contrário, a escolha é voluntária como diz o estatuto:
“Todos os integrantes devem ter a certeza absoluta que querem fazer parte do Primeiro Comando…” (item 9) – e a saída, também –“[…] Ninguém é obrigado a permanecer no Primeiro Comando, mas o Primeiro Comando não vai ser tirado por ninguém.” (item 17).
É a partir desse ponto de vista que podemos pensar o fenômeno do crescimento do PCC. Todos os seus membros escolheram estar ali, sujeitando-se a todos os riscos, como a prisão, a morte em confrontos com a polícia e a eliminação por organizações rivais. Mas, ainda assim, ciente de todos esses riscos e das regras de funcionamento, o PCC cresce a cada ano, até mesmo já se falando no primeiro cartel de drogas brasileiro.
Mas, quais as razões desse crescimento? A resposta fácil para esta pergunta seria afirmar que se trata de uma busca meramente financeira. Porém, há algo a mais em jogo. Em “Round 6”, o personagem Cho Sang-Woo é considerado o “orgulho de Ssangmun”, bairro perifério de Seul, por ter se formado em uma prestigiosa faculdade, o que parece uma realidade distante dos moradores daquele bairro. Todos acreditam que Sang-Woo está fazendo carreira no mercado financeiro, em viagens de negócios, que estaria rico, por ser inteligente e preparado. Quando, na verdade, Sang-Woo encontra-se afundado em pesadas dívidas e é procurado pela Polícia por ter aplicado golpes em clientes de seu antigo emprego. Sang-Woo é um dos principais defensores que os competidores, a cada etapa, mesmo com cada vez mais mortes, não desistam do jogo. O que ele busca é, também, o reconhecimento social que um dia teve ou que acredita ser merecedor.
Em muitos casos, a pirâmide das organizações criminosas possibilita que alguns poucos cresçam na organizam e se tornem chefes do tráfico, grandes assaltantes de banco e outras funções que, da perspectiva daquela cultura criminal, é, em si, grande e merecido reconhecimento. É válido dizer que o crescimento de determinado criminoso na organização depende da eliminação do outro – ainda que a traição não seja tolerada -, seja por meio da morte ou da prisão. Alguém morto ou preso “abre espaço” para o crescimento de quem está abaixo na hierarquia do crime.
É, também, pela busca de seu lugar no topo que se formam e se expandem as organizações criminosas. A busca da empreitada criminosa é, também, por reconhecimento, pois, como dizem os Racionais “ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. Todos os dias entra no crime um Sang-Woo que não tem mais para onde voltar, que busca ser reconhecido e chegar ao lugar que acredita ser merecedor.
É por isso, na minha visão, que as leis penais, que se tornam cada vez mais duras, são invariavelmente inúteis, porque a prisão, em muitos casos, é um obstáculo, um percalço, às vezes até entendido como necessário, para que a vitória final, enfim, possa chegar. Estar preso é, ainda assim, estar no jogo. Até mesmo porque são as próprias leis penais e o encarceramento massivo que incentivam para que cada vez mais pessoas entrem para esse “jogo”.
Nos últimos 15 anos, experimentamos um endurecimento de diversas leis penais. Mas devemos nos perguntar: por que tantas pessoas continuam entrando para o crime?
Sem medo de afirmações polêmicas, arrisco dizer que uma facção criminosa é, essencialmente, um pacto de solidariedade entre pessoas privadas de direitos e sujeitas a arbitrariedades do Estado. Pessoas encarceradas, em condições subumanas, sofrendo torturas e violações, vão encontrar seus próprios meios para enfrentar tais ilegalidades. O corpo pode ser aprisionado e torturado. A mente e as ideias, não. É por isso que o grande repórter policial Josmar Jozino afirma que todas as facções criminosas nasceram dentro das cadeias.
Diferente do que pensa a sociedade, as leis duras não combatem criminosos nem fazem justiça. As leis duras produzem encarcerados. E encarcerados se organizam em torno de um propósito que, em certos casos, é diferente daquilo que a sociedade considera certo e justo. Mas, justiça é um termo que tem múltiplos significados, a depender de quem o interpreta.
Nesse sentido, nos lembra o grande Luis Carlos Valois, que “não existe sociedade segura com cadeias violentas”. Comumente se diz que muitas pessoas, ao deixarem as cadeias, voltam para o crime. Contudo, a par de todas os incentivos criados por intensas violações, questionamos: quando é que estas pessoas tiveram a oportunidade de sair dele?
Em síntese, penso que somos uma sociedade que não percebe que todos os dias, por diversos motivos, entre eles os incentivos criados pelo Estado com leis penais cada vez mais duras, permitimos que pessoas “joguem o jogo”, no mundo do crime. Ao negar todas as oportunidades — e até mesmo a condição de seres humanos aos que estão ali, tornamos a escolha em participar de um Round 6 da vida real, muito mais fácil para quem vivencia arbitrariedades nos porões dos cárceres brasileiros.
Para quem não tem mais para onde voltar, se associar para um jogo mortal da vida real é só mais uma tarefa a cumprir e, assim como aqueles 455 competidores, sem ter a certeza do prêmio final.
¹ Excluímos, por óbvio, o número 001, que era, na verdade, o idealizador do jogo e responsável por toda a diversão sádica proporcionada aos apostadores.
² José Márcio Felício faleceu em decorrência da COVID, em 10/05/2021, assim como mais de 600 mil brasileiros. A carta mencionada foi escrita por ele, em virtude de ter sido proibido pelo TJSP de dar entrevistas. Geleião, que ficou preso, ilegalmente, 42 anos (a lei brasileira permite apenas 40, no total) é um dos responsáveis pelo nascimento de uma das maiores organizações criminosas do mundo e nunca pôde efetivamente contar sua história. A carta escrita por Geleião traz mais perguntas que respostas. Respostas, essas, que morreram com ele, que não teve chance de oferecer as explicações necessárias sobre tudo que aconteceu. Geleião não foi herói, talvez tenha sido vilão, mas certamente é alguém responsável por mudar, para sempre, a história do crime no Brasil.
³ Sugere-se ao leitor, se quiser entender mais sobre a história e a dinâmica do PCC e das facções criminosas no Brasil, que assista a série “Primeiro Cartel da Capital: A história da maior facção do Brasil”, produzida pelo UOL, disponível no Youtube. Trata-se de um documentário primoroso sobre a criminalidade brasileira e o papel do PCC no tabuleiro da segurança pública e seus desdobramentos.
4 Fala-se em “Cartel de Drogas” quando a atuação de determinada organização criminosa é tão significativa que sua atuação estende-se a mais de um continente, como é o caso do PCC, que comercializa drogas com a Europa, África e Oriente Médio.
5 A afirmação foi feita na série “Primeiro Cartel da Capital”, produzida pela UOL, no episódio 2, da 1ª temporada.
Carlos Eduardo Duarte
Advogado criminalista, Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).
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