a Márcio Pimenta – Nos últimos tempos, poucos documentários nacionais causaram tanta discussão quanto O aborto dos outros (2007). Se duvida, digite o título no Google e saia visitando as páginas encontradas. Natural. Num país com uma das legislações sobre aborto mais atrasadas do planeta, a visão liberal do trabalho salta aos olhos. Não que seja […]
a Márcio Pimenta – Nos últimos tempos, poucos documentários nacionais causaram tanta discussão quanto O aborto dos outros (2007). Se duvida, digite o título no Google e saia visitando as páginas encontradas. Natural. Num país com uma das legislações sobre aborto mais atrasadas do planeta, a visão liberal do trabalho salta aos olhos. Não que seja um filme militante a qualquer custo. Com cuidado, a equipe comandada pela diretora paulistana Carla Gallo passa por cima (no bom sentido) do discurso moralista-religioso “a favor da vida” e dá voz a mulheres que se submetem ao doloroso mas necessário processo – como a jovem de 13 anos que foi estuprada. A seguir, uma entrevista que a diretora concedeu ao Amálgama.
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Amálgama – A idéia do filme toca num dos pontos sensíveis da sociedade brasileira. Como o público tem repercutido sobre a forma com que ele abordou o assunto?
Carla Gallo – Confesso minha satisfação com a reação do público. Geralmente a questão do aborto é abordada através da lei, da moral ou da religião. Olhar pra o sentimento das mulheres e seus conflitos, que é a proposta do filme, tem trazido às pessoas maior generosidade para com a questão.
O caso da garota de 13 anos é sempre citado e talvez tenha sido o que mais tenha chocado a opinião pública, por motivos óbvios. No entanto, durante as filmagens, houve algum momento em que você tenha tido dificuldades em conduzir o seu trabalho?
Durante a realização do filme os conflitos foram vários. Como tocar um assunto tão caro às mulheres, buscar profundidade, delicadeza, afastar a morbidez? Que caminho tomar para ajudar a romper a rotina de moralismo e culpa que o aborto estabelece? Essas foram algumas das questões internas que me afligiam.
Do ponto de vista operacional, ultrapassado um primeiro momento em que médicos e outros profissionais entenderam nossa busca e se transformaram em parceiros, a questão central foi a ética da condução das filmagens, no sentido de respeitar a confiança que as mulheres depositaram em mim.
No filme nota-se que não há a presença de homens acompanhando as mulheres durante o processo do aborto. Isto é reflexo de uma decisão que é solitária desde a primeira vez em que ocorre na mulher a idéia de fazê-lo?
Sim. Algumas pessoas me perguntaram: por que você “cortou” os homens do filme? Eu não “cortei”. Não é uma questão de montagem. Eles simplesmente não estavam lá. Salvo algumas exceções, geralmente as mulheres estão sós. Podemos dizer até que algumas vezes os homens abortam antes mesmo das mulheres: quando não assumem sua participação na gestação, quando as abandonam.
No filme temos um exemplo bastante interessante. Uma das mulheres, a que realiza a interrupção pelo fato do bebê não ter perspectiva de vida, diz que o marido foi o principal vetor na sua decisão. Ficamos com essa mulher 6 dias no hospital, filmando todo o processo. O marido foi vê-la apenas um dia, numa visita que durou pouco mais de 1 hora.
Como se dá as relações destas mulheres com suas famílias após o aborto? Há apoio ou é uma fase tão dura quanto o processo em si?
Geralmente elas não compartilham sua decisão com as famílias. Poucas mulheres têm apoio de uma ou outra pessoa da família.
A religião tem um enorme peso neste debate. Você crê que há uma distância das religiões em relação as transformações na sociedade e, principalmente, das necessidades das mulheres?
Acredito que há um descolamento total entre os dogmas religiosos e a realidade social. Tomemos por exemplo a religião católica, que sequer admite que nós seres humanos somos seres sexuais e que a sexualidade faz parte de nossa fisiologia, deve ser vivida normalmente, de forma saudável. A Igreja Católica é contra os métodos contraceptivos, contra o uso da pílula e da camisinha. É uma visão totalmente torta, e não é uma questão de anacronismo. Nós sempre fomos sexuais, mesmo na idade média.
Por trás do debate do aborto, há ainda a questão do gênero. É mais difícil para as mulheres dos países subdesenvolvidos conseguirem convencer a sociedade em que vivem da necessidade de se discutir o problema que está ai presente?
Geralmente, nos países onde o aborto foi legalizado, houve uma articulação profunda entre os movimentos de mulheres. Uma vitória feminista respaldada pela sociedade. Nos países subdesenvolvidos geralmente há um conservadorismo social, um entrave religioso e ausência de força política no movimento de mulheres para forjar esta mudança.
Você não filmou em clínicas clandestinas devido a questões que envolvem inclusive sua própria segurança. Depois da difusão do filme, chegou até você a repercussão neste meio?
Não. Gostaria muito de saber o que esses médicos, enfermeiras, “curiosas”, acharam. Mas não acredito que alguém deles chegue a mim, se identifique como parte desse sistema e teça comentários. Embora gostasse de saber.
O filme cumpriu o seu papel e (re)abriu o debate. Há algo mais que você queira dizer e não teve oportunidade no filme?
Não acho que o filme tenha “(re)aberto” o debate realmente. Acho que ele movimentou a reflexão em algumas pessoas que assistiram, em alguns meios de comunicação em momentos específicos, em grupos médicos e feministas, mas há muita resistência. A mudança necessita de alterações muito grandes e um filme não tem força pra isso.
Em relação aos meus desejos com o tema, minha proposta está toda lá. Mesmo que não contente a todos, mesmo que alguém detecte falhas, fui até o meu limite como documentarista e pessoa. Meu limite profissional e emocional. Fiz o meu melhor.
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[veja o trailer de O aborto dos outros]
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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