por Daniel Lopes – Pó de parede (Não Editora, 2008), estréia da gaúcha Carol Bensimon, constitui-se de três pequenas estórias: “A caixa”, “Falta céu” e “Capitão Capivara”. Há, claro, elementos comuns às três, mas, se as duas primeiras guardam uma comparável densidade, a terceira é mais leve. Divertida, parece saída de um sonho, principalmente por […]
por Daniel Lopes – Pó de parede (Não Editora, 2008), estréia da gaúcha Carol Bensimon, constitui-se de três pequenas estórias: “A caixa”, “Falta céu” e “Capitão Capivara”. Há, claro, elementos comuns às três, mas, se as duas primeiras guardam uma comparável densidade, a terceira é mais leve. Divertida, parece saída de um sonho, principalmente por conta de onde se passa, um hotel de luxo no alto de uma montanha, isolado do mundo, onde, ao olhar pelas janelas, às vezes os hóspedes vêem nuvens ao redor e nada mais.
É nesse hotel que estão Clara e Carlo Bueno, personagens que, alternadamente, nomeiam os cinco capítulos. Clara faz um bico no local. É filha de boa família, não tem necessidade desse emprego, mas resolve pegá-lo para “juntar idéias suficientes para o meu primeiro livro”. Sim, é uma jovem aspirante a escritora. Qual não é sua grata surpresa, então, quando descobre que Carlo Bueno, seu escritor predileto, está no hotel.
Carlo é autor de renome. Menos pela qualidade que pela vendagem de seus romances, que é absurda por ter ele um editor empenhadíssimo em vender suas produções, e ambos serem adeptos do “merchandising literário”, que consiste em inserir nos livros publicidade de lugares e produtos. Como ele próprio explica a um funcionário do hotel:
Com quando bebem café no meio da novela e dizem Ó, que café ótimo, eu nunca tomei um café igual e etc., close na caixa do café. Pois o hotel me paga para ficar aqui, Edgar. Eu fico aqui escrevendo o livro e o livro vai se passar no hotel e as pessoas vão ler o livro e vão ter vontade de vir aqui para o hotel.
A denúncia da picaretagem marqueteira é mesmo a principal característica da estória. Está lá, além de Carlo Bueno, o chatíssimo gerente do hotel. Este, segundo Clara, “era uma péssima pessoa, o que dava para entender, porque em geral é o que acontece com quem lê muito sobre marketing”. A afetação do gerente e do escritor versados em marketing compete com a constrangedora situação de Clara – cuja função é fantasiar-se de Capitão Capivara e divertir a criançada – para nos fazer rir. (Da moça, rimos, mas paramos logo, constrangidos. Coitada, a fantasia não permite que mantenha contato com o querido Carlo Bueno.)
Pó de parede
O marketing também está presente na segunda estória do livro. De fato, podemos imaginar as três partes da obra como três conjuntos, aqueles em círculo dos livros de matemática usados nas séries iniciais – o conjunto A tem uma área de interseção como B, que, por sua vez, tem uma área de interseção com o C. B e C, como disse, convergem na questão do marketing. A e B têm aquela matéria que parece ser eterna, mas que, quando menos se espera, revela-se efêmera. Estamos falando da juventude que chega ao fim (e também do pó de parede).
Como na primeira estória os laços e a inocência da juventude são ainda mais vivos que na segunda, podemos imaginar Pó de parede como o retrato de uma cruel e frustrante trajetória do sublime (a infância, a juventude e seus ideais) ao sórdido (tudo enfim tornou-se marketing, até a literatura).
“Falta céu”, a segunda estória, passa-se “numa cidade bem pequena entre duas mais ou menos grandes”. Nessa cidade, uma grande construção vai mexer com a curiosidade e a vida dos habitantes, incluindo as crianças – Lina, Titi e João –, para quem o mistério é ainda maior.
Apenas com o passar do tempo, e à medida que imensas áreas vão sendo devastadas, mudando do verde das árvores para o vermelho da terra violada, é que os moradores do lugarejo vão enfim saber do que se trata: um condomínio de luxo.
De um dia para o outro inventaram um nome, colocaram uma propaganda enorme. Dizia Golden River Banks. (…) As casas cresceram alimentadas por tijolos, telhas e concreto e estavam agora saudáveis e disciplinadas em três filas, de frente para o rio e com jardins bem organizados, como mapas copiados por crianças em papel vegetal.
Mais à frente, o narrador, melancólico, sentencia: “Golden River Banks, tudo o que você precisa e o que você nunca achou que ia precisar.”
A pichação de spray que o desesperado marido de Alzira – uma empregada doméstica da região que acabara “servindo” a um dos mestres-de-obra – faz no muro do novo condomínio é simbólica: é a felicidade artificial tendo gerado uma maldade real.
O suicídio como começo
A “Caixa” do título da primeira estória é a arrojada casa da personagem principal, Alice. Pré-adolescente da classe média alta, vive junto com Tomás, de sua mesma faixa etária. Amizade inocente. Junto deles, a menina Laura.
Como seus pais – pai botânico, mãe professora de francês – são uma mistura de hippies com esquerdistas e boêmios, Alice cresce num ambiente de contestação à ordem vigente (estamos no período da ditadura militar). O arquiteto Kowalski, autor do projeto da casa-caixa, é figura central nesse enredo. Nas histórias contadas pelos pais, ele “sempre estava presente, nas histórias de protestos estudantis por exemplo era ele que levava a bandeira maior (aquela que logo terminaria com o mastro quebrado).”
Com sua morte, baixam nuvens escuras sobre a casa, aquela que era a sua “grande obra”.
Anos depois, uma Alice convenientemente formada em arquitetura e que faz especialização em Paris recebe uma ligação da mãe no Brasil: Laura havia se matado. O que poderia representar um fim, mas, visto as páginas seguintes de Pó de parede, significa apenas um indício, um sintoma de doenças futuras, quase que um mal menor.
Carol Bensimon [ao lado] nasceu em 1982. Isso prova que a nova geração de escritores brasileiros não têm necessariamente que abordar apenas o sexo e a violência dos grandes centros urbanos. É bobagem, inclusive, pensar que existe apenas um tipo de sexo e um de violência, como o fazem alguns dos nossos descolados-autores-urbanos. Pra não falar do “umbiguismo”.
Nas 122 páginas de Pó de parede, Carol mostra que as violências são múltiplas, e que é possível falar de juventude sem falar apenas de sexo ou de si próprio. É possível transpor experiências pessoais para um romance de forma magistral – como Rodrigo de Souza Leão em Todos os cachorros são azuis, que resenhei aqui no Amálgama; aliás, a forma com que Rodrigo se coloca no livro é tão delicada, que somente após publicar a resenha vim a saber que tratava-se um texto em grande parte autobiográfico –, mas em geral não é isso que acontece quando algum autor novato se mete a reencarnar Casanova. Alguns, inclusive, já vão aí beirando os quarenta e ainda não sacaram o lance.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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