Ateísmo débil

-- "O espírito do ateísmo", de André Comte-Sponvilee --

por Bruno Cava – Com o subtítulo “Introdução a uma espiritualidade sem Deus”, é o livro mais audacioso de André Comte-Sponville. O filósofo iniciou a carreira na tradicional academia francesa, mas sua inquietação não-acadêmica acabou por afastá-lo de bancas e auditórios e currículos online. Passou a escrever mais livremente, quase diletante, de todo modo em clima didático e descontraído. Propôs-se a divulgar a filosofia, na sua vertente materialista, naturalista, humanista e atéia. Publicou obras com títulos frugais como Pequeno tratado das grandes virtudes, Uma educação filosófica e Viver.

Livre do pesadume de notas de rodapé e longas citações, seus livros conseguem articular conteúdos sem atrofiar em lição de escola ou, horror!, auto-ajuda travestida de ensinamento filosófico. Tributário de uma prosa confessional, em primeira pessoa, na melhor tradição de Michel de Montaigne e Blaise Pascal, as obras vertem a ontologia de Epicuro, Spinoza, Nietzsche ou Wittgenstein, em ensaios palatáveis e salpicados de insights, digressões elucidativas e humor inteligente. Correndo por fora do mainstream intelectual, o autor tem sido um êxito editorial, como educador eloqüente, que não hesita em comparecer à televisão para se dirigir ao grande público — por assim dizer fusão (improvável) de Marilena Chauí e Viviane Mosé.

Em O Espírito do Ateísmo, o materialista epicuro-spinozano pretende conciliar-se com o lado espiritual. Sem Deus, transcendência, esperança ou autoridade religiosa; mas com “fidelidade”, “sentimento oceânico”, “serenidade” e “comunhão”. Em síntese, um lado espiritual independente das religiões. Sua meta: explicar como um ateu não precisa renunciar à espiritualidade, e como esta não está associada necessariamente à crença em Deus e menos ainda à filiação religiosa.

Para isso, Comte-Sponville divide a peça em três atos: “Pode-se viver sem religião?”, “Deus existe?” e “Que espiritualidade para os ateus?”.

No primeiro ato, reafirma-se a repulsa por qualquer sistema de autoridade baseado no dogma, na moral institucional, na verdade anunciada — com seus “janízaros do absoluto” e suas cruzadas assassinas. Se Deus existe tudo é permitido, pois não se transige com o absoluto. Por um lado, Comte-Sponville admite que as religiões, quando moderadas e submetidas ao poder civil laico, podem ser úteis como consolo metafísico ou fio condutor de comportamento. Afinal, diante do sofrimento e da morte, cada um se arranja como pode. Quem somos nós para frustrá-los. Mas, por outro lado, sustenta que a religião é dispensável para fundamentar uma ética, logo, a felicidade. Que se pode jogar a água da banheira fora, mas não o bebê.

Daí Comte-Sponville introduzir a sua versão humanista-e-secular de ética não-religiosa. Eis um cristianismo mundanizado, e por isso esboça chamá-lo, paradoxalmente, de “ateísmo cristão”, para então se contentar com “ateísmo fiel”. Isto significa um ateísmo que não prescinde dos valores cristãos, nominalmente a comunhão e a fidelidade. Não rejeita a memória da comunidade e o convívio humanista com as pessoas, no sentido de assistência, caridade, temperança, eqüidade e polidez. Um ateísmo light, entre o agnosticismo pudico e o (ele rotula) “niilismo bárbaro” — tão nocivo e incivilizado à sociedade quanto os piores fundamentalismos religiosos.

O segundo ato, “Deus existe?”, é o menos polêmico. E gerará menos calores nas mãos do leitor ateu. Aqui, Comte-Sponville compila seis cadeias de argumentos para não se acreditar numa entidade pessoal, transcendente e eterna, criadora do mundo, acima do bem e do mal, que gerou o ser humano a sua imagem e semelhança, com o fito de cumprir um plano providencial e secreto, que visa à salvação das almas. Deus do cristianismo, islamismo e judaísmo. Seguem refutações loquazes, elegantes, das célebres provas de Deus — ontológica, cosmológica e física –, bem como os conhecidos argumentos da enormidade do mal e da mediocridade do homem. Capítulo leve, quase burocrático, não fosse a prosa límpida do autor, menos passional que Richard Dawkins, mas igualmente convincente. Até aqui, nada de novo no reino do ateísmo.

O bicho pega é no terceiro ato, a razão de ser do livro.

Convocando usuais referências do cânone ocidental, mas também “orientais”, como Lao-Tsé, Nagarjuna, Krishnamurti e Prajnanpad, o autor pretende estabelecer que o ateu também tem espírito, ou melhor, um lado espiritual. Nada tem de anímico, transcendente ou participante do divino, mas também não possui sentido figurado. É espírito mesmo. Trata-se de um atributo que distingue o humano dos demais animais. Que faz o homem contemplar uma bela paisagem ou gozar estupefato de uma sinfonia de Mozart. E permite, assim, que uma criatura finita e relativa possa experimentar o absoluto e o ilimitado.

A mãe dos argumentos dele é uma experiência absolutamente pessoal do absoluto, um sentimento do Todo que, na sua inteireza e desproporção, seria inenarrável. Epifânica. É uma vivência reveladora, num “sentimento oceânico” que várias pessoas relatam em certas ocasiões singulares. Um amor por todas as coisas que dá vontade de chorar, uma revelação de plenitude imensamente serena; uma aceitação total do enigma agasalhado no peito; uma prostração apaziguadora e venerável, pela insignificância do homem diante de um universo infinito, do universo indiferente, do “eterno silêncio desses espaços infinitos”.

Ousado, Comte-Sponville confessa filiar-se ao misticismo, ao mistério, ao “fazer silêncio”. Subscreve Ludwig Wittgenstein, no seu mergulho calado nos confins da lógica e da ontologia. Subscreve Martin Heidegger, no seu escutar do Ser, nas entranhas da floresta negra da existência.

São sessenta páginas tentando verbalizar essa epifania que, para o autor, inaugura e possibilita uma espiritualidade atéia — nada contraditória com seu materialismo e naturalismo.

Audacioso, porém impotente.

A impressão que tive, ao finalizar O Espírito do Ateísmo, é que Carlos Drummond foi mais sintético e expressivo, mais feliz, com o poema “A Máquina do Mundo” — entre outros de sua fase metafísico-sentimental. É curioso como tais teodicéias místicas sempre e sempre se realizam com viagens para a floresta, em imersões na natureza silvestre. Quer diante de um lago bucólico, de um velho plátano, de uma cachoeira tropical, de uma estradinha de Minas Gerais… o “sentimento oceânico” jamais ocorre no burburinho da metrópole, na azáfama de vozes e cheiros das ruas e praças. A meditação pressupõe paisagens amplas e contemplativas, e afasta o homem de suas preocupações (supostamente) menores e mais imediatas.

Mas a fuga da cidade é também o distanciamento da política. A estética da aceitação, da escuta do Ser e a contemplação assombrada, não importa, todas elas contrariam uma ética da revolta. Na medida em que não se revolvem e se remordem com o absurdo, mas o abraçam e se contentam. Esse contentamento me enche de ódio. Fazem do absurdo um bonsai e não uma máquina de guerra, e assim adormecem no conformismo deslumbrado.

Mais uma vez Camus foi clarividente, quando escreveu que só o ateísmo é pouco, pois a negação pela negação nada produz. O ateísmo não viceja seus frutos podres se não passar ao campo da prática, na revolta no seu tempo, contra o seu tempo. Viver absurdamente demanda que o absurdo se conjugue com o orgulho e a revolta, numa recusa militante à finitude, à totalidade, ao absoluto, isto é, a todas as formas de fraqueza, conciliação e subjugação. O homem exila-se em sua vida menos por se prostar e aceitar sua falibilidade e torpeza, do que por insubmissão n´importe quoi.

Mesmo nos últimos suspiros, sentirá o ciúmes daqueles que ficam, que poderão saborear um sorriso, uma risada, um bom vinho ou a boca da mulher. “Eu irei para debaixo da terra, e você, você caminhará ao sol!” O ateu revoltado morrerá irreconciliado, sua sabedoria não virá jamais. E não escreverá odes ao poente nem se inebriará com a sua insignificância. Disso, no máximo, poderá rir, com timbre trágico, nunca aceitar.

André Comte-Sponville assume uma ética do apaziguamento. Pretende saciar a sua fome de absoluto com uma outra religião. Religião pós-moderna? pós-materialista? Uma religião orientalizada (nunca oriental), um misticismo desesperado, um pessimismo passivo disfarçado de contemplação, na mesma linha de Arthur Schopenhauer, e de infindáveis autores esotéricos contemporâneos. Prefere o silêncio da floresta e a sua clara noite, à alegria carnavalesca da metrópole, ao espetáculo de dança e sangue da política mundana. Prefere os olhos e as pupilas cansadas aos dentes e mandíbulas vorazes. Zaratustra não foi ao deserto para reconciliar-se com o mistério, mas para sofrer até a última gota de absurdo e não se purificar.

Na busca por simpatia universal, Comte-Sponville não concilia o ateu com o seu lado espiritual. Domestica-o com a “espiritualidade” e termina por oferecer apenas mais uma religião da decadência — tão contemporânea, tão débil.

::: O espírito do ateísmo ::: André Comte-Sponville ::: Martins Fontes, 2009 (2ª tiragem), 192 páginas :::
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  • Felipe

    Bruno, não li o livro mas achei sua analise perfeita. O ateísmo que ele defende é débil mesmo, um ateísmo que foge da luta e da política mundana, ateísmo egoista, ateísmo oriental de busca da paz interior e de um certo isolamento e não envolvimento.

    Mas ao mesmo tempo fico intrigado. Nietzsche colocou os valores cristãos como decadentes, já que despertavam a submissão e aceitação, contra a vontade de potencia que deveria ser inerente ao ser humano para sua auto realização.

    Mas será que não é possível dar uma misturada nisso tudo? Nem sei definir o que sou, não tenho uma crença numa entidade maior, mas acredito em espiritualidade, espiritualidade mundana mesmo, da luta cotidiana, diária, com efeitos práticos na vida real, não uma espiritualidade da contemplação e de uma analise excessiva do ser.

    E dentro dessa “espiritualidade mundana”, sendo ateu ou não, não seriam necessários certos valores humanos ou cristãos junto a uma vontade de potencia nietzszchiana? Ou são filosofias, valores e modos de viver irreconciliáveis?

    Porque a revolta pela revolta também não seria também uma aceitação? Uma aceitação revoltada apenas, sem nenhuma implicação prática de transformação de nada? Apenas pelo prazer de se revoltar, de se indignar? Se indignar pela existencia não resolve o problema de quem ta passando fome, não resolve os problemas do mundo.

    Assim como o cara que se isola para buscar esse sentimento oceanico está num processo de aceitação, o cara que grita, se revolta, mesmo na cidade, tem seu momento de indignação, mas sem qualquer sentido ou efeito, os dois são conformistas, não são?

    Posso estar viajando aqui, mas acho que dá para conciliar certas virtudes humanas ou cristãs (sei la), como respeito ao próximo, fidelidade, generosidade….etc….com uma certa dose de revolta mundana junto ao sangue da política mundana, lutando como um guerreiro nieztscheano!

    Abraço

  • http://http//quadradodosloucos.blogspot.com Bruno Cava

    Salve, Felipe,

    É difícil evitar discutirmos o sentido das palavras — discute-se outra coisa aliás?

    Mas espiritualidade, na concepção do Comte-Sponville, é esse sentimento oceânico, o grande oooooommmm, a reverberação do cosmo, e ele convoca todos os filósofos por assim dizer orientalistas — Schopenhauer, Heidegger, Wittgenstein — pra falar racionalmente de misticismo, aceitação, serenidade, todos esses valores contemplativos que Nietzsche classifica como budismo ocidental.

    Isso a espiritualidade. Essa espiritualidade, meu argumento, é abominável num mundo permeado de injustiça e desigualdade, onde a busca por um absoluto escamoteia as lutas do aqui-e-agora, a revolta tão premente a uma geração neutralizada pela história. Essa “espiritualidade de contemplação”, concordo contigo.

    Por que chamar de espiritualidade “luta cotidiana, diária, com efeitos práticos na vida real”, ou seja, uma concepção MATERIALISTA do mundo. A meu ver é o contrário de uma concepção espiritualista ou idealista, para a qual o mais importante é o espírito e as idéias, do que as causas eficientes que mobilizam o mundo e suas criaturas, na luta por vida, na afirmação da potência do ser. Ontologia positiva desdobrada em ética e não odes ao Grande Nada, ao Oooommm siderado, ontologia negativa convertida em misticismo alienante.

    Revolta pela revolta é niilismo destemperado, adere à seita de Nechaev, ou às veleidades do situacionismo tardio, e aí estou com Camus em “O Homem Revoltado”, que isso não passa de idealismo, não passa de vestir Rambo com roupas de guerrilheiro.

    Estou contigo na revolta pela liberdade, pela criação, pela afirmação da vida, pela multiplicação do ser, pelo amor, mas não o amor egocêntrico, narcísico-filial, familiar, arrivista, filistino ou amor ao absoluto, mas o amor à terra, à carne, aos desejos, na substância infinita de causas eficientes. O Grande Amor de uma revolta contra o que nos nega e limita, que nos nega não os nossos egos, mas a nossa vida em comum, juntos e separados.

    A questão dos valores cristãos ele trabalha no primeiro capítulo, quando fala de uma moral mundana atéia, porém “fiel”. Aí ele fala em tradição, em memória, em comunidade.

    Depende muito. A crítica nietzschiana quer redimir Jesus e não negá-lo. Jesus o líder revolucionário, mundando, na luta herética pela justiça dos homens. Jesus de Pasolini. Jesus o dizer SIM duplo-afirmativo. O SIM de Joyce, que conclui o romance do século.

    Quais valores cristãos, Felipe? amor ao próximo pra N. não passa de vaidade e sentimento gregário. O anticristo prega o amor ao distante, isto é, à diferença, ao estrangeiro, ao que espanta. A caridade para N. não passa de má consciência de dondoca. O anticristo prega a justiça feita na espada, o Jesus de Mateus. A moral para N. encobre a fraqueza e dissimula a dominação dos fracos (para Marx também). O anticristo prega uma ética da potência onde os justos afirmam seus valores, criam seus sentidos, ou seja, a vida julga os valores e não mais os valores julgam a vida. Isto é profundamente não-comunitário, não-conformista, INFIEL. Uma ética – sim! mas além do humanismo, uma ética sobre-humana, além da finitude do homem.

    É aquela coisa. Não adianta matar a cobra (igreja) mas não se livrar do veneno inoculado (humanismo, ideais modernos).

    Abraço!

    • Felipe

      Valeu Bruno pela bela resposta!

      Me esclareceu muita coisa.

      Quando digo espiritualidade da “luta cotidiana, diária, com efeitos práticos na vida real”, é porque acredito que o ser humano possa transcender dessa forma. Che Guevara, por exemplo, atuou, lutou no mundo real mesmo e talvez tenha dentro dele sentido a mesma paz que um monge isolado, só que em ação. Atingiu o mesmo desprendimento de si e do corpo que um ser isolado buscando esse tal do oooommmm….só que na minha opinião de uma forma muito mais digna, pelo simples fato de ter se envolvido no mundo real, que é cheio de necessidades de se fazer justiça. Quando penso em espiritualidade penso dessa forma, baseada numa concepção materialista, mas que mesmo sendo materialista e talvez exatamente por isso, carrega em si uma força transcedental.

      Transcender de verdade, na minha opinião, vem com a luta e não sentar de baixo de uma árvore e achar a paz interior.

      Gostei da sua afirmação de que a revolta pela revolta é niilismo destemperado, a analogia ao Rambo foi brilhante…rs. Concordo contigo.

      Sobre os valores cristãos, acho que me perdi um pouco por falta de conhecimento. Mas fiquei mais tranquilo ao entender que a filosofia N prega o amor ao distante, ao estrangeiro, ao que espanta e que sem dúvida é muito mais dificil e sem hipocrisia, baseado numa ética além do humanismo como vc disse.

      Mas também, abrir mão do humanismo não é perigoso? O humanismo é mesmo uma vaidade apenas, uma consciência de dondoca ou algo do tipo? O humanismo também encobre a fraqueza e dissimula a dominação dos fracos?

      Por exemplo, no caso dessa guerra no Rio. Um humanista defende a ocupação dos morros, mas sem derramamento de sangue, porque enxerga ali seres humanos vítimas de suas circunstâncias sociais e economicas. Neste caso o humanista está sendo apenas vaidoso, ou está de fato amando o diferente, o que espanta como diz N. ?

      Abraço
      Abraço!

  • http://dandi.blogspot.com Dandi Marques

    Mentiroso este seu texto, Bruno! (No sentido de ser assombroso de bem elaborado!) Ateísmo ou agnosticismo devem mesmo ser uma grande busca. A pressa está realmente na calmaria de um ideal. Não é por aí que devemos trilhar o caminho da busca por respostas e conhecimento. O bom e velho ceticismo nos da a medida desta eterna busca por evolução, tanto no campo filosófico quanto social. Parabéns pelo texto!

  • A mosca da sopa

    Acabou o tempo das grandes sínteses, senhores; entramos na era do caos primitivo da grande lógica pendular; enfim ..a fisica quantica deletou de vez as concepções de Newton, Einstein, Marx e Freud…
    isso é meio assustador mas tambem é bom; nenhum charlatão vai vender panaceia ideologica global.
    Quanto ao Brasil as coisas não estão piores por termos piorado…estão piores porque somos mais brasileiros..e la nave va…

  • http://oopostodasseis.blogspot.com/ Naná

    ”E permite, assim, que uma criatura finita e relativa possa experimentar o absoluto e o ilimitado.”

    Estive pensando sobre isso:o ateísmo,as religiões e a espiritualidade…
    concordo que não dá pra disassociar religião de religiosidade,contudo,eu,uma atéia
    recém-convertida,confesso que às vezes creio na existência do pensamento positivo e de seus benefícios(por exemplo).

  • José do Vale Pinheiro Feitosa

    Bruno, uma vez escrevi este poema para um amigo que andou nas franjas desta “paz”, desta inércia do século XXI, ou da idade dele:

    meu ser, não abandones as tempestades,
    que desfolharam as roseiras de tua juventude,
    e transportaram para o chão as pétalas sedosas,
    as cores impressionistas de tua alma aprendiz.

    tantos galhos quebrados, pedaços lançados,
    no turbilhão que dobra, tanto dobra até partir,
    na janela e feche-a para as ventanias inaceitáveis,
    negues demônios intoleráveis que te oferte morta paz.

    meu ser, nunca te adaptes as coisas como estão,
    alguém ou algo lhes deu o estado que não te convém,
    aceita a tua natureza de não aceitar jamais o que é,
    no mundo em movimento, o que é, o é em transformação.

    meu ser, diga sempre sim, já expirando a palavra não,
    o infinito de Deus, é uma plêiade de astros finitos,
    a eternidade é a pausa da respiração entre o não e o sim,
    é como a harmonia dissonante de tantas vozes se exprimindo.

    se queres viver a própria morte, antes negue a renascença,
    e tua alma se apascentará nos meandros medievos de Francisco,
    chagas te atravessarão as palmas e calma, calma em teu inferno,
    de cuja profundidade jamais sairás, este é o conceito primeiro.

    mas abraça o chão que te sustenta, sempre desejando voar,
    ama a multiplicidade, sonha com a unicidade e fragmenta-te;
    os espaços que entre eles surgirão, de dor ou alívio, são lembranças,
    da unidade que se adiciona, se divide e se multiplica em tantos.

    viaja, transita nos espaços distantes, com as pás dos ciclones,
    junta-te aos objetos que por lá são jogados, tonteia-te no giro,
    retorna ao mesmo que antes estiveste, sabendo da outra volta,
    mas, meu ser, não te deixes ficar no olho vazado dos furacões.

    banha-te neste rio de batismo, purifica-te de tantas limpezas,
    deixa que as águas adicionem a esta superfície que nada tem,
    os minerais que nodoam, as manchas que distinguem,
    pois o imaculado é a ditadura de uma única nota na canção exilada.

    meu ser, quando a ponta do chicote lanhar tua carne, viva de sofrimento,
    não dialogues com o acoite e tampouco com a ferida, ambas irracionais;
    olha bem fundo nos olhos do rosto cuja mão acionou o corte em ti,
    e revele que aquilo não é natural, é apenas a vontade de alguém.

    meu ser, ao sair nas ruas, não te esqueças de ti mesmo, no silêncio interior;
    o vai e vem da vida, é um tanto que vai e outro que não virá, chegando e saindo;
    na marcha a paisagem que revela é crítica, pois é construção de cada um,
    contempla-a com senso de transformação e com alguns tragos de preservação.

  • http://quadradodosloucos.blogspot.com Bruno Cava

    Poeta Zé, achei pra lá de potente. Domínio dos fluxos.

    Caminho na mesma vibe: mais ferida aberta e menos conciliação, mais borrasca e menos fuga da crise permanente (devir) que somos.

  • http://quadradodosloucos.blogspot.com Bruno Cava

    Ah sim, a penúltima estrofe me lembrou um microconto:

    “O animal tomou o açoite das mãos do dono e açoitou-o até perceber que era apenas outro nó do instrumento.”

    Açoite de Kafka.

  • http://fmlima.blogspot.com Fernando da Mota Lima

    Bruno:
    Embora discorde de alguns pontos da sua resenha, achei-a excelente. Os comentários também importam para ampliar algumas das questões que você expõe com brilho e energia polêmica. Teria muito o que discutir, outra evidência do quanto você provoca o leitor ativo. Ressalto apenas dois pontos. Achei luminosa sua intuição relativa ao fato de que o sentimento oceânico sempre se manifesta associado, simplifico, ao mundo da natureza, a estados de solidão contemplativa. Por que nunca na febre das metrópoles, no reino turbulento da civilização técnica? Embora omita as associações que sua intuição me sugere, indico-as apenas para sugerir o quanto sua intuição provoca o leitor e expande seu horizonte de significação. Queria apenas acrescentar que Nietzsche, certamente seu filósofo de eleição, não procedeu, nesse sentido,de modo diferente de Comte-Sponville e Drummond, para citar apenas dois “oceânicos” contemplativos apartados do mundo que você reivindica como locus necessário do ateísmo afirmativo, o ateísmo que diz sim à vida abraçando-a em termos combativos. Você sabe que Nietzsche buscou as montanhas, as mais altas e remotas, inspirado por um horror ao mundo moderno, simplifico novamente, que é a tônica de toda a tradição crítica idem, na filosofia quanto na literatura.
    O outro ponto refere-se à crítica que você desfecha contra o que lhe parece a contemplatividade resignada de Comte-Sponville. Não li o livro que você resenha, mas li muitos outros livros dele e em nenhum encontro qualquer sentido de adesão resignada ao mundo. Pelo contrário, ele refuta qualquer expressão de ateísmo passivo ou resignado. Lembro-me de que em A Sabedoria dos Modernos, em parceria com Luc Ferry, assim como em A Felicidade, desesperadamente, ele refuta críticas que o visam nesses termos.
    Fernando.

  • http://www.divinamagia.com.br Assis Utsch

    Bruno Cava,
    Como você já leu o livro, essa segunda resenha pode ser mais interessante para seus comentaristas do que para você mesmo.
    O livro de André Comte-Sponville, um dos filósofos ateus mais famosos da França, autor de vários obras, e que se junta a alguns outros ateus muito presentes na mídia daquele país, como Luc Ferry, autor de Aprender a Viver; e, ainda, a Michel Onfray, com seu Tratado de Ateologia. Os livros de Comte-Sponville estão traduzidos para o português desde algum tempo. Um particularmente me chamou a atenção – O Espírito do Ateísmo – que é um texto bem ameno, à semelhança dos escritos por Luc Ferry, mas diverso de Michel Onfray, que é essencialmente contundente, tal como o anglo-americano Christopher Hitchens, com seu Deus Não É Grande. Este se emparelha com Richard Dawkins – de Deus, Um Delírio – e chega a ser até mais incisivo. Um outro ateu muito presente na mídia, dessa vez na americana, é Sam Harris, autor de Carta a Uma Nação Cristã e de A Morte da Fé.
    Sobre Comte-Sponville, diríamos que ele se apresenta de forma tão suave e tão preso aos valores religiosos que o achei demasiadamente catequizado, cristianizado demais, conforme você menciona em seu texto. É certo que sua linguagem é erudita, rigorosa, clara, concisa, e tem a felicidade de abordar com extraordinária lucidez aspectos filosófico-religiosos bastante complexos. Mas quem se acostumou com aqueles livros, desde os de Nietzsche, passando por Por Que Não Sou Cristão, de Bertrand Russell, e culminando com esses recentes, bem afirmativos, encontrar depois um Comte-Sponville com toda a sua leveza é surpreendente. Como você notou, ele chega a dizer que só está separado do Cristianismo “por três dias … da Sexta-Feira Santa à Páscoa” no domingo. “… grande parte dos Evangelhos continua a valer”. “ … salvo Deus”. “ … porque não sou fã de milagres”. “É por isso mesmo que sua vida (de Jesus), tal como nos é contada, me comove e me esclarece”. (p.65) Depois de referir-se aos diversos episódios e às mensagens de Cristo, ele pergunta: “… seria razoável dar mais importância a esses três dias, que nos separam, do que aos trinta e três anos que precedem, e que … nos reúnem?”. (p.66/67) Ele justifica seu apego aos valores cristãos com base em dois princípios: o da fidelidade e o da comunidade. “Pode-se viver sem religião, mas não sem comunhão, nem sem fidelidade”, isto é, todos nós ocidentais estamos indissociavelmente vinculados aos valores e à comunidade cristãos. (p. 67)
    O autor passa naturalmente ao largo dos horrores que os Evangelhos oferecem …

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