DANIEL LOPES - Philip Pullman opõe Jesus a Cristo em novo livro
por Daniel Lopes – Em uma coleção literária que pretende recontar mitos e tem a presença de nomes como Karen Armstrong, David Grossman e o nosso Milton Hatoum, o britânico Philip Pullman resolveu participar recontando nada menos que a estória de Jesus Cristo. Ou melhor, de Jesus e de Cristo, porque neste O bom Jesus e o infame Cristo José e Maria, a caminho de Belém, têm duas crianças e não apenas uma. Pastores vão ao estábulo onde esperam ver o Messias. Na dúvida sobre qual dos dois meninos seria aquele que redimiria a humanidade, Maria se decide pelo segundo a nascer, menino mais frágil que o primeiro: o nome desse é Cristo, diz Maria. O outro se virará muito bem sem esse título.
Durante a infância, Jesus é um menino danado como outro qualquer, perpetrando peraltices por toda parte. Cristo, fraquinho e comportado, fica espreitando o irmão. Apesar de tirá-lo mais de uma vez de enrascadas, usando de sua lábia e conhecimento das Escrituras, no fundo o menino Cristo é um invejoso, orgulhoso, ambicioso, malicioso, mentiroso. É por essas alturas que seu irmão Jesus o chama de patife – (“scoundrel”, que virou o infame do título brasileiro).
Desde cedo, Jesus começa a operar milagres, ou assim se comenta. A inveja de Cristo aumenta, pois ele próprio não consegue levar a cabo esses truques. Jesus começa a arregimentar seguidores, pregando sobre o Reino de Deus que em breve se inauguraria. Cristo é profunda e genuinamente interessado pelo Reino. Já que não tem os poderes de Jesus, poderia ao menos ajudar na organização para a chegada do Reino? Ele tenta. Explica a Jesus seu plano: ele, Jesus, deveria impressionar as massas com seus milagres, e o poder e admiração com isso adquiridos deveriam ser investidos na constituição de uma organização, uma igreja, que por muitas gerações cuidaria das vidas e das almas dos membros da humanidade, dizendo qual o caminho correto para se seguir e punindo adequadamente quem dele se desviar. Jesus discorda. O “Reino na terra” lhe é um completo nonsense. O Reino verdadeiro de qualquer forma já está bem próximo, não havendo necessidade de se apelar para uma burocracia onipotente e onipresente.
Cristo é então induzido, por um “estranho” que lhe aparece subitamente, a acompanhar e registrar os passos, atos e discursos de Jesus. Com isso, diz o estranho, eu e você estaremos ajudando a levar a cabo o projeto de Deus na terra, não obstante o espírito pouco resolutivo de Jesus. Cristo concorda e passa aos calcanhares do irmão, tomando o cuidado de manter-se o tempo todo fora de suas vistas. Quando isso não é possível, em reuniões fechadas, apela para o recurso de um informante, estrategicamente localizado no círculo íntimo de Jesus. Cristo registra tudo em papiros que de tempos em tempos são recolhidos pelo estranho.
A partir de um dado momento, Cristo resolve deturpar o que lhe relata o informante, a fim de a narrativa condizer com a teoria da história e do Reino declamada pelo estranho. Tempos turbulentos se aproximam, lhe diz o estranho:
(…) se o caminho para o Reino de Deus deve ser aberto, nós que sabemos devemos estar preparados para fazer com que a história seja uma criada da posteridade, e não sua mestra. ‘O que deveria ter sido’ é um melhor servo para o Reino do que ‘o que foi’. Estou certo de que você me entende.
Cristo entendeu. Assim, quando o informante lhe revela que, diante da fala do discípulo Pedro de que ele seria o Messias, Jesus retrucou “É isso que você acha? Bem, é melhor não soltar a língua sobre isso. Eu não quero ouvir esse tipo de conversa, entendido?”, Cristo resolve pôr em seu relato o que “teria sido” melhor para o advento e futuro do Reino, a saber, que Jesus não apenas não tinha admoestado Pedro como havia-lhe prometido as chaves do céu. Em outro momento, ao tomar ciência de um evento de moral até relevante mas pouco edificante para o “Reino na terra”, Cristo “soube que seria outro daqueles dizeres de Jesus que estariam melhor como verdade do que como história.”
Começamos aqui a ver o livro de Philip Pullman pelo que ele realmente é: uma fábula anti-católica, mais do que anti-cristã. Não é um percurso inédito na carreira do autor. Quando postei no meu blog um vídeo com resposta direta e reta do Pullman a alguns críticos de O bom Jesus, um leitor esperto lembrou da trilogia fantástica “His Dark Materials”. Mas neste novo livro, Pullman vai mais ao ponto.
Para o “estranho” da fábula, os crentes deveriam terceirizar algumas responsabilidades, delegando-as à igreja:
(…) a vida humana é difícil; existem profundidades e compromissos e mistérios que parecem aos olhos inocentes como traição. Deixe que os sábios da igreja carreguem estes fardos, porque existem muitos outros fardos para o crente carregar. Há crianças para educar, doentes para cuidar, famintos para alimentar. (…) A igreja não será o Reino, porque o Reino não é deste mundo; mas ela será um prenúncio do Reino, e o caminho certo para se chegar até ele.
Mas para ter vida, e uma vida longa e plena, explica o estranho a Cristo, a igreja precisa do cadáver de Jesus, da
presença sempre viva de um homem que é tanto um homem e mais do que um homem, um homem que seja também Deus e a palavra de Deus, um homem que morra e retorne novamente à vida. Sem isso, a igreja definhará e perecerá, uma casca vazia, como toda outra estrutura humana que vive por um momento e então morre e desaparece.
Dadas as maquinações e os aparecimentos mágicos ou quase isso desse estranho, algumas nuvens carregadas começam a se formar na cabeça do leitor a respeito de qual possa ser sua verdadeira identidade.
Embora Cristo continue essencialmente um patife, desse ponto da trama em diante ele começa a ser corroído por dúvidas – estarei fazendo a coisa certa? merecerá meu irmão a morte? ele é um teimoso, sovina de seus reais poderes, mas ainda assim sua morte valeria a pena, mesmo se para trazer à vida um Reino de felicidade?
Mas para o estranho que quer fundar uma igreja por cima do cadáver de Jesus, o ceticismo de Cristo, por mais vago e pontual que seja, é uma verdadeira afronta aos projetos de Deus.
Da mesma forma que é preciso atentar para os diferentes graus de “patifaria” de Cristo ao longo da estória, devemos perceber quando, realmente, Jesus é “bom”. Quando este prevê (para si mesmo, em um monólogo com Deus) nos mínimos detalhes como seria terrível o futuro com uma igreja que se quer instrumento da vontade de Deus, é aí que ele é verdadeiramente um profeta, e não quando prediz o Reino. Essa é a parte menos relevante de sua condição de bom, no entanto. A parte mais relevante aparece quando, à beira de ser aprisionado por soldados romanos que o levariam a Pôncio Pilatos, Jesus se ajoelha e invecta contra Deus, quando admite mesmo que pode ter se equivocado o tempo todo, que não haveria Reino, que não havia Deus. Almejando receber um sinal de vida, de existência, de Deus, Jesus escuta de volta apenas os sons à sua volta – um cachorro latindo ao longe, uma coruja mais próxima. “Se eu achasse que você está nesses sons”, diz ele,
eu poderia te amar com todo meu coração, ainda que esses fossem os únicos sons que tu fizesses. Mas tu estás no silêncio. Tu não és nada.
Deus, há alguma diferença entre dizer isso e dizer que tu não estás aí de forma alguma? Eu posso imaginar algum padre esperto em anos vindouros enganando seus pobres seguidores: “A grande ausência de Deus é, claro, o sinal mesmo de sua presença”, ou algum disparate do tipo.
E fazendo referência ao Salmo 53 (“Disse o néscio no seu coração: Não há Deus”): “Esse padre é pior do que o néscio do salmo, que ao menos é um homem honesto.”
A questão sobre o “silêncio” de Deus é, de fato, uma constante no debate teológico desde sempre. Só para ficar no exemplo de Joseph Ratzinger (e para me repetir), em O sal da terra, livro que publicou nos anos 90, quando ainda era cardeal, ele escreveu:
Na nossa maneira de viver e de pensar, há tantas interferências perturbadoras que não somos capazes de captar o som, que também se tornou tão estranho para nós que não o reconhecemos como vindo dEle. (…) [Deus fala] através de sinais e dos acontecimentos da vida, e através das outras pessoas. É necessário, pois, ter uma certa vigilância e perseverança para não ser dominado pelas coisas que ocupam o primeiro plano.
E a mesma questão também é prato cheio para ateus, como o filósofo André Comte-Sponville, que relatou em O espírito do ateísmo que, em sua infância católica, certo dia disse ao padre com quem se confessava: “Eu rogo a Deus, mas ele não me responde”. O padre respondeu: “Deus não fala porque ouve”. André: “Isso me fez pensar por muito tempo. Com o passar deste, porém, esse silêncio me cansou, depois me pareceu suspeito. Como saber se é o silêncio da escuta ou da inexistência?”
Na fábula de Philip Pullman, foi quando passou por um forte momento de suspeita em relação a esse silêncio que Jesus nos deixou ver seu lado cético e racional, componente principal de seu caráter de “homem bom”. Pena que naquela altura, graças às maquinações de Cristo e da figura estranha a favor da igreja, ele já era vítima do futuro.
::: O bom Jesus e o infame Cristo ::: Philip Pullman :::
::: Cia. das Letras, 2010, 184 páginas ::: Compre na Livraria Cultura :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
[email protected]