por André Egg – Publicado no Brasil em 2010 pela Civilização Brasileira, em tradução de Marcos de Castro, o livro foi originalmente escrito em 2007. Ele é muito bem-vindo, pois ajuda a superar a escassez de publicações no Brasil sobre História do Cristianismo. Assunto dominado por editoras confessionais, apesar de algumas se preocuparam em publicar reflexão original brasileira e latino-americana ou boas traduções, a maioria dos títulos disponíveis é de interpretações comprometidas com os interesses dogmáticos, muito mais do que com a verdade histórica.
Paul Veyne tem 80 anos e é um dos grandes nomes da historiografia francesa. Especialista em história de Roma, foi responsável pelo vol. 1 da clássica coleção História da Vida Privada, traduzida no Brasil pela Cia. das Letras. Começou a se tornar importante quando publicou Como se escreve a história, em 1970, no contexto do que Peter Burke chamou de terceira geração da Nova História francesa, que superou o domínio da história econômica e da demografia, postos pela geração de Braudel. Paul Veyne preconizou uma nova valorização dos grandes personagens, e dos eventos ocasionais e fortuitos, navegando contra a corrente daquelas grandes histórias focadas no clima, na produção econômica, ou nas ideias políticas. Neste contexto, o estudo sobre a relação de Constantino com o cristianismo é uma obra paradigmática do tipo de história que Veyne propõe.
Para fazer sua proposta, Veyne contradiz vários lugares-comuns sobre o papel histórico do primeiro imperador romano cristão. Mesmo tendo sido comunista na juventude (diversão garantida as comparações entre a “fé” de Constantino na Providência divina e a de Lênin e Trotsky na Revolução) e continuando a se declarar ateu, Veyne não desconhece o significado da experiência religiosa e da crença em Deus, evitando transformar o “ateísmo metodológico” numa ferramenta direcionada a produzir anacronismos.
A conversão de Constantino foi genuína, não obra de um estrategista pragmático. Um apêndice sobre a noção de Deus no judaísmo foi incluído no livro para demonstrar como a crença pode ser atrativa inclusive para pessoas inteligentes. Outro capítulo apresenta a igreja cristã como instituição dinâmica e de vanguarda, discutindo com as visões que se consagraram a partir da erudição oitocentista, que colocou a religião e a instituição eclesiástica no limbo das superstições tolas e infundadas. Ainda um outro capítulo discute a questão da religião como ideologia capaz de sustentar governos, ideia marxista que Veyne nega: a existência de religiões em coabitação com regimes monárquicos está mais para coincidência que para relações diretas de causa e efeito.
Do mesmo modo o autor reflete em capítulo próprio sobre se a Europa atual tem “raízes cristãs”. A conclusão é que não, senão no sentido de que muita gente ali se professa cristã, só que mais por tradição que por decisão. Há outras marcas mais profundas na identidade européia, e nada do que se identifica com a civilização ocidental é necessariamente derivada do cristianismo – seria mais correto falar numa Europa universalista, ou no domínio do Estado de Direito, do que falar numa “Europa cristã”.
A análise que Veyne faz do cristianismo de Constantino demonstra que as implicações não são determinantes. Não havia cálculo político do imperador em adotar uma religião minoritária. Tampouco o cristianismo passou a ser a religião oficial – era apenas a religião pessoal do imperador, que beneficiou a igreja como pode, mas sempre dentro dos limites de sua atuação pessoal. A transformação em religião oficial deveu-se a fatores como a decadência própria do paganismo, o cálculo político dos oportunistas que adotavam a religião beneficiada pelo imperador, ou ainda os casuísmos que transformaram uma disputa pelo trono em uma guerra religiosa entre cristianismo e paganismo, em 394.
Para Veyne não houve nada ao longo do século IV que indicasse que o cristianismo se tornaria a religião dominante, ou que o império se tornaria cristão. Foi tudo uma sucessão de eventos fortuitos (como tudo o mais na história – é o que ele tenta nos dizer), como a curta duração da vida e do reinado de Juliano, que promoveu uma restauração pagã entre 361-363. O apoio à Igreja no reinado de Constantino foi um capricho pessoal do imperador, que podia muito bem ser revertido pelo próximo monarca.
Quando, no fim do século IV, o cristianismo se tornou a única religião do império, continuou coexistindo com judeus e pagãos (um capítulo sobre judaísmo e cristianismo demonstra a impressionante continuidade até o massacre nazista). Religião tolerada, depois promovida pelo imperador, e finalmente oficial do Império, a transição para o cristianismo entre 312 e 394 não significou a extinção do paganismo. A nova religião assimilou, e manteve (ou apenas tolerou) costumes pagãos que tinham formado o jeito de viver do povo: gladiadores, feras, circo, devoção aos santos e às relíquias.
Constantino se tornou um paradigma do cristianismo nascente: converteu-se sozinho, sem pregação de teólogo ou bispo. Não se batizou, senão no leito de morte, e por isso não participava dos cultos e não tomava a comunhão. Pregava para sua corte, construía igrejas, beneficiava os bispos, organizava e presidia concílios, perseguia hereges, fomentava a ortodoxia. A fé nunca mais seria a mesma, tornando constante aquele mal-estar causado em leitores sinceros do Novo Testamento quando se deparavam com as diferenças entre a igreja institucional e a vida do Cristo e dos Apóstolos. Nos tempos de Constantino o cristianismo deixou de ser uma vanguarda radical e proselitista, tornando-se costume normal de uma vasta população.
::: Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394) ::: Paul Veyne :::
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