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Até aqui, tudo bem

por Daniel Lopes (29/11/2011)

Robin Wright é otimista em relação à Primavera Árabe, mas parece dar mais que o benefício da dúvida aos islamistas

-- "Rock the Casbah: Rage and rebellion across the Islamic world", de Robin Wright --

Recomendando dias atrás os livros dos senhores Tahar Ben Jelloun e Fethi Benslama, eu disse que já era esperado que algumas das melhores análises em formato de livro das revoltas árabes viessem da França. Outra não surpresa são os bons livros já aparecendo nos Estados Unidos, país não apenas com grande número de intelectuais vindos de países árabes e de acadêmicos com excelência no estudo de todas as regiões e culturas, mas também com a imprensa de melhor serviço externo do mundo. Apesar da crise financeira dos veículos tradicionais, a quantidade e qualidade dos correspondentes da grande mídia estadunidense continuam sendo assombrosas. Em matéria de Oriente Médio, Robin Wright é uma das profissionais que se destacam. Ao longo de sua carreira, a mulher viajou e reportou a partir de 140 países para praticamente todos os veículos mais respeitados dos EUA. De modo que, neste período ainda inicial das transições árabes, seu Rock the Casbah é uma boa dica. Com muita indefinição no horizonte, Wright tenta não fazer muitos julgamentos, se limitando a fazer um balanço dos principais eventos e atores. É, portanto, um livro não muito pretensioso.

A repórter diz que estamos presenciando uma revolta tripla: essa mais visível, contra ditadores geriátricos, mas também revolta contra a violência jihadista (ao recusar e denunciar seus métodos imorais) e contra a ideologia islâmica. Neste último ponto, Wright fecha com autores como Jelloun e Benslama. Mas ao contrário destes dois, ela dedica maior espaço em seu livro (um capítulo inteiro) aos desafios que os democratas entre os revoltosos terão que enfrentar a partir de já. Um problema sério é o apego ao poder um tanto exagerado de militares egípcios, que, por eles, passariam o mínimo possível de poder para os civis, e o mais tarde possível. Outro é a rivalidade sunita/xiita no Iêmen, potencialmente explosiva como foi no Iraque.

É exatamente por enxergar uma revolta em várias dimensões que Wright usa “Islamic” no subtítulo do livro, e não apenas “Arab”. Estaria ocorrendo uma revolta também de muçulmanos contra muçulmanos radicais – no Paquistão, no Irã, na Indonésia, na Índia. E, como lembra a autora, a maioria dos muçulmanos não fala árabe (apenas 15% são árabes) e nenhum dos cinco países com maior população muçulmana (Indonésia, Paquistão, Índia, Bangladesh e Turquia) é árabe. Wright vê uma alimentação mútua entre a batalha de muçulmanos vivendo em democracias assaltadas por extremistas e a batalha de muçulmanos lutando por democracia contra tétricas ditaduras. Somente por levantar e defender esse ponto, Rock the Casbah já merece leitura atenta.

O que se convencionou chamar de Primavera Árabe é, para Wright, o quarto grande momento sísmico da região nos últimos 100 anos. O primeiro sendo o colapso do Império Otomano no pós-Grande Guerra, o segundo sendo a criação de Israel em 1948, e o terceiro a revolução islâmica no Irã em 1979. O Irã, a propósito, seria o grande indicador de tendências da região. Foi assim quando da aiatolada, que liberou energias milenaristas e assassinas pela Síria, Palestina e todo canto, e foi assim em 2009, com os protestos pró-democracia que parecem ter dado uma boa medida do humor dos muçulmanos e árabes vivendo sob ditaduras. O quarto capítulo de Wright é dedicado ao Irã, e nessas páginas, com a competência dos grandes repórteres, a autora acompanha a trajetória da jovem Neda Soltan, de quando resolveu sair às ruas para desafiar o regime até sua morte por uma bala no meio da rua. Se, como vimos, Fethi Benslama viu no suicídio do tunisiano Mohamed Bouazizi a redefinição do que vem a ser um verdadeiro mártir, Wright vê o mesmo no assassinato daquela jovem que desafiou a repressão de um regime falido até cair morta.

O 2009 iraniano pressagiou o 2011 árabe tanto nos métodos dos ativistas – que se utilizaram enormemente das novas ferramentas de comunicação para combinar protestos, fugir da censura a notícias e enviar seus próprios textos e imagens para o resto do mundo – quanto na repressão ferrenha que envolveu tortura e estupros em prisões e confissões televisionadas de culpa e arrependimento, ao estilo soviético (as torturas e estupros são corriqueiros e indispensáveis para a propagação do medo que sustenta a teocracia; leiam sobre isso em Le nouvel homme islamiste: La prison politique en Iran, de Chahla Chafiq, um dos que lutaram pela derrubada do Xá apenas para depois se ver preso e exilado pela nova ditadura). Dois anos depois, egípcios, líbios, sírios e outros experimentariam o mesmo – especialmente os sírios, que vivem em um regime de apartheid armado e apoiado por Teerã.

Nos próximos dez anos, a contra-jihad será tão definidora de vastas parcelas das sociedades muçulmanas como o foi o espírito jihadista na década passada (seria mais correto dizer nas últimas três décadas). A contra-jihad ganhou espaço por vários motivos, o principal deles sendo o fato de muçulmanos serem as maiores vítimas daqueles que dizem lutar em seu nome. Não é à toa que um dos principais nascedouros do despertar contra-jihadista tenha sido o Iraque. Mais especificamente a província de Anbar, que no final de 2006, três anos após a invasão estadunidense, estava completamente sob domínio da Al Qaeda na Mesopotâmia. Os bravos assassinos de eleitores, no entanto, foram longe demais na ânsia de instaurar os rigores da lei islâmica, a ponto de líderes tribais enfim se reunirem para, com suporte logístico e armas estadunidenses, limpar a área de adoradores de bin Laden. O incremento, em 2007, no número de tropas levado a cabo por W. Bush, explica Robin Wright, não teria tido o sucesso que teve em reduzir o número de vítimas fatais do niilismo islâmico se não fosse com a colaboração dos próprios iraquianos na batalha.

Outro despertar contra-jihadista se deu no Paquistão, em 2009. Dois anos antes, elementos entre os mais radicais do Talibã afegão atravessaram a fronteira a ocuparam o Vale do Swat, no Paquistão, com 1,7 milhão de habitantes. Passaram então a impor a sharia. A educação de meninas foi abolida, duzentas escolas que ministravam aulas sem separação de sexos foram destruídas, mulheres foram obrigadas a usar a burca, homens a não raspar a barba, estabelecimentos ligados aos ramos de beleza e entretenimento tiveram que ser fechados, vacinas anti-pólio suspensas etc. etc. Os pios homens também tinham o costume de filmar castigos corporais aplicados a quem infringia alguma das trocentas leis e em seguida distribuir os vídeos pela comunidade, para servir de alerta. Em 2009 passaram do, como dizer, tolerável. Uma jovem de nome Chaand foi levada à rua por quatro homens. Enquanto três a seguravam e mantinham com o rosto no chão, um quarto a chicoteava com força extrema, nas costas e nádegas, trinta e seis vezes. A cada vez, a menina gritava “Me matem ou parem”. O vídeo, como de costume, circulou, para a educação das massas. O crime de Chaand nunca ficou certo, mas parece ter sido o de sair de casa sem a companhia de um homem da família, ou o de recusar o pedido de casamento de um dos líderes do Talibã. O certo é que os paquistaneses, do Vale e do resto do país, se revoltaram e saíra às ruas pedindo a presença do Estado também nessa região. As forças armadas paquistanesas enfim a invadiram. Na ação, mais de mil fanáticos perderam a vida.

-- A autora --

Robin Wright não diz, mas a perda de prestígio dos jihadistas também tem a ver com a implacável (embora nem sempre inteligente) batalha declarada pelos Estados Unidos contra eles desde 2001. A batalha envolveu campanhas militares, mas também cerco aos canais de abastecimento financeiro de Al Qaeda e companhia – o que drenou, por exemplo, os recursos antes utilizados na prestação de “serviços sociais” para as comunidades que os fundamentalistas queriam impressionar para ganhar apoio. A campanha antiterror culminou com a morte de bin Laden. Como uma daquelas típicas analistas situadas em algum lugar entre a esquerda e o centro, não era mesmo de se esperar que Wright desse à guerra ao terror seu devido crédito. “As guerras dos EUA no Iraque e no Afeganistão”, escreve ela, “tinham apenas produzido mais desemprego, crime, corrupção e incerteza política.” Mas a “certeza política” dos regimes de Saddam e do Talibã era melhor que a incerteza surgida após a queda de ambos? A corrupção é hoje maior nesses países do que era antes? Crime, é brincadeira. Desemprego, vá lá.

Você pode ter sido contrário à campanha contra Saddam, ou mesmo contra os talibãs, mas não há como negar que as guerras dos EUA no Iraque e no Afeganistão também livraram o mundo do primeiro ou segundo regime religioso mais sanguinolento em um país de maioria muçulmana, e do regime secular mais sanguinolento em um país de maioria muçulmana; o sangue nas mãos de Saddam e dos talibãs era primordialmente sangue árabe e muçulmano. Essas consequências das guerras estadunidenses não podem ser vistas como meros detalhes. Imagine uma Primavera com Saddam.

É também por Robin Wright ser uma liberal com aparente medo-pânico de ser acusada de orientalismo que, a meu ver, ela subestima o perigo islamista. Diz ela que “o islã quase certamente terá um grande papel para desempenhar na transição” democrática de sociedades muçulmanas. Até aí, nada demais. Mas que papel será esse? Cerca de um terço de Rock the Casbah é dedicado às transformações comportamentais e culturais do mundo muçulmano que permitiram ultimamente o boom de ativismo através da música, do cinema e do teatro, a tomada de consciência das mulheres, o advento de imãs “moderados” que fazem uso das redes sociais para se contrapor aos imãs mais radicais.

O bom é que tudo isso está presente nas ondas de protesto dos mundos árabe e muçulmano. O problema, como a própria autora reconhecerá mais à frente, é que os partidos que nascerão no pós-revolta deverão se encaixar (já estão se encaixando) em três grandes grupos: partidos herdeiros dos antigos regimes, bem ou mal disfarçados; partidos islâmicos; e partidos mais ou menos liberais e seculares, que vão da centro-esquerda à centro-direita. É neste último grupo, e praticamente apenas nele, que estão os rappers, comediantes, ativistas pelos direitos da mulher e outros indivíduos que a autora tão justificadamente celebra em um terço de seu livro.

Ou melhor, reescrevendo o início do parágrafo anterior, a autora não reconhece isso como um problema. Ela apenas cita friamente os três grupos de partidos, como se a divisão de forças não apresentasse grande desafio ao otimismo demonstrado páginas atrás ao analisar o papel de jovens liberais para o desenrolar das revoltas.

Pudera. Embora Robin Wright cite uma pesquisa de opinião pública realizada pela think tank pró-Israel Washington Institute for Near East Policy, que conclui que o levante árabe “não é um levante islâmico”, bem mais à frente ela vai se sentir tentada a pedir aos leitores, por via das dúvidas, que não confundam islamistas com extremistas. Mas será que não devemos mesmo acreditar numa ligação próxima entre uns e outros? Cristãos e judeus conservadores que decidem levar a religião para a política, raramente dão ativistas não extremistas. Será diferente com o islamismo (islamismo é o islã político)? Você precisa apenas virar essa página da Wright (p. 241) para se deparar com a afirmação de que os salafistas, bastante atuantes na cena egípcia, são “radicais ultraconservadores inspirados pela seita puritana wahhabista da Arábia Saudita” cuja “credibilidade como parte da contra-jihad ainda está para ser provada” (p.243).

OK, você dirá, mas os salafistas são lunáticos que não têm tanto prestígio quanto a Irmandade Muçulmana, essa sim de islamistas não extremistas. Será? Em uma resolução do último mês de março (p.242), a Irmandade decidiu que cristãos e mulheres são “inadequados” para ocupar a presidência de um Egito democrático. Para mim, isso é extremismo puro e cristalino. E para você? Acredito que Wright quis alertar para que não confundamos islamistas com terroristas. Aí sim. Mas também aí já é baixar demais as exigências.

::: Rock the Casbah: Rage and rebellion across the Islamic world :::
::: Robin Wright ::: Simon & Schuster, 2011, 320 páginas :::
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Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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